Um espaço de aprendizagem

Posts by Category : Pautas

Treinamento de sensibilidade resumido  0

Quando falo sobre treinamento de sensibilidade, falo sobre sensibilidade em relação a opressões, principalmente em um contexto social onde temos vários comportamentos e termos normalizados que são nocivos a grupos marginalizados.

AVISO: Palavras estigmatizadas serão expostas sem censura nesta postagem, no item C, para quem estiver lendo ter certeza de quais são as palavras referidas.

A. Não assuma que todas as pessoas são perisexo, cis, ou de gêneros binários.

Mulheres não necessariamente menstruam, e pessoas que não são necessariamente mulheres menstruam. Produtos como absorventes, portanto, são úteis para pessoas que menstruam.

O gênero de uma pessoa não é necessariamente relacionado ao banheiro que ela vai: pessoas não-binárias muitas vezes precisam escolher entre um banheiro masculino ou feminino, e pessoas trans que não passam como o gênero que querem podem acabar escolhendo o banheiro em que se sentem mais seguras.

“Homens e mulheres” não é uma separação que cobre todas as pessoas, e, muitas vezes, esta expressão e outras similares pode ser substituída por “pessoas” ou por “comunidade” (em casos específicos, como em “comunidade LGBT+”).

Perguntar pelos pronomes/linguagem de todas as pessoas presentes deve ser um procedimento padrão em espaços que aceitam pessoas trans e não-binárias.

B. Aliás, não assuma que todas as pessoas vão ser o mais privilegiadas possível, ou que elas não podem fazer parte de grupos estatisticamente pequenos.

Uma pessoa pode ter opiniões misóginas mesmo sendo mulher, e acusar a pessoa de na verdade ser um homem não é um argumento efetivo.

Uma pessoa que se identifica como alguma identidade obscura não é necessariamente uma pessoa branca e rica, e que, portanto, “não sabe de nada do mundo”.

Uma pessoa que está falando sobre a falta de reconhecimento de pessoas intersexo pode ser uma pessoa intersexo, e não uma pessoa perisexo “sendo fresca em relação a um grupo que é uma exceção minúscula”.

Uma pessoa que não está lhe respondendo pode realmente não ter ouvido e/ou não conseguir falar. Não simplesmente assuma que pessoas não possuem deficiências se não são explicitamente apresentadas a você como deficientes.

Uma pessoa que está em um aparente “relacionamento hétero” pode na verdade ser bi, pan, assexual, não-binária, entre outras identidades. Uma pessoa que está em um aparente “relacionamento gay” pode também ser de qualquer uma destas outras identidades, ou até mesmo estar em um relacionamento hétero com uma pessoa trans que não consegue “passar” como seu gênero!

C. Quando alguém de um grupo marginalizado diz que algo é nocivo, escute, não importa o quanto isso faz parte do dia-a-dia.

Ficar tentando adivinhar o gênero de pessoas que você não conhece, ou brincar de “mudar de sexo” por diversão é nocivo para pessoas trans e não-binárias.

Ficar tentando adivinhar a identidade de uma pessoa que (aparentemente) não conforma com o gênero binário aparente é nocivo para pessoas cujas identidades não são visíveis.

Fazer piadas de estereótipos raciais, relacionados a identidades LGBTQIAP+, relacionados a deficiências físicas ou mentais, relacionados a pessoas traumatizadas, entre outros, está ajudando estas minorias a se sentirem mal consigo mesmas, não importa se a piada foi positiva, ou se você na verdade não acredita no estereótipo.

O conceito de inteligência é capacitista e elitista, porque pessoas possuem diferentes habilidades, independentemente da capacidade de expressá-las e do quanto são úteis em um contexto capitalista. Portanto, evite utilizar esta “medida” para qualquer coisa.

Utilizar palavras como “retardade”, “imbecil”, “idiota”, “bicha”, “viado”, “hermafrodita”, “traveco”, “vadia”, “puta”, “cegue”, “surde”, “aleijade”, “babaca”, “louque”, “maluque”, “sapata” e “mulate” é completamente inadequado nos dias de hoje, por termos acesso amplo a informações sobre tais palavras, sendo que os únicos contextos relevantes para elas são exemplos, livros históricos (sendo que estes dois ainda podem ser censurados/modificados na maior parte dos casos), ou pessoas dos grupos atingidos – não adianta ser alguém de grupo externo – reapropriarem tais palavras, utilizando-as como partes de suas identidades. [Nota: palavras neutras em relação a gênero estão escritas em sua forma neutra.]

D. Quando algo der errado, se desculpe rapidamente, e tente consertar seu erro.

Não reclame de como é difícil atender aos pedidos de grupos marginalizados, e não tente se justificar, dizendo que não deveria se esforçar porque o resto da sociedade não liga, se você quer ajudar.

Não pense que isso passou e é correto só porque alguém que liga para estas questões não disse nada. Pessoas marginalizadas não vão necessariamente ter energia para corrigir outras pessoas o tempo todo, mas ainda podem estar tomando notas mentais sobre você.

E. Caso seja seguro, leve seus conhecimentos para fora.

Pronomes de pessoas não-cis são obrigatórios mesmo em situações onde não existem pessoas não-cis ou pessoas que conhecem as pessoas em questão em volta.

Você pode corrigir pessoas que não fazem parte de grupos marginalizados sobre questões relacionadas a estes, independentemente de ter ou não ter uma pessoa de tal grupo marginalizado em volta.

Você sempre pode evitar rir de piadas machistas/racistas/capacitistas/etc., e você sempre pode evitar utilizar palavras estigmatizadas relacionadas a grupos marginalizados.

Você pode corrigir pessoas que deixam implícito ou explícito que acreditam que só existem dois sexos, duas orientações, ou dois gêneros, assim como corrigir pessoas em outras questões.

Bandeiras de orgulho  0

Bandeiras são pedaços de tecido, ou gráficos imitando tal tecido, utilizados para simbolizar, sinalizar, e/ou decorar.

Bandeira gay original

Bandeira gay original

Antes de existirem bandeiras de orgulho, já existiram outros símbolos para a comunidade LGBTQIAP+. Por exemplo, ambas as cores verde e roxo já foram símbolos de homossexualidade. Porém, em 1978, Gilbert Baker, um artista, desenhou uma bandeira arco-íris de 8 cores, para atender às necessidades de ativistas da época que queriam um símbolo para a comunidade. Como rosa não estava disponível comercialmente na época, decidiram abrir mão dessa cor e de mais uma (azul anil), para ter uma bandeira que pudesse ser dividida igualmente. Assim nasceu a bandeira gay de 6 cores.

As outras bandeiras de orgulho populares, com a exceção das de fetiches, foram criadas no final dos anos 90, ou nos anos 2000. A bandeira bi surgiu em 1998; a lésbica (com o machado) surgiu em 1999; a transgênero também em 1999; a intersexo com o degradê em 2009; a assexual e a genderqueer em 2010.

Depois disso, surgiram várias outras bandeiras. Hoje em dia, é comum que qualquer gênero ou orientação tenha sua bandeira, a ponto de pessoas que recém criaram definições novas já fazerem ou mandarem fazer uma bandeira de orgulho para tal definição.

Enquanto não há nada de errado em ter sua identidade representada, vale lembrar que bandeiras de orgulho nada mais são do que gráficos aleatórios, caso tais bandeiras não sejam boas o suficiente.

A Associação Vexilológica Norte Americana possui uma lista dos 5 princípios básicos de design de bandeiras. Estes são os seguintes:

  1. Mantenha-a simples. Uma criança deve conseguir desenhá-la só com a referência da memória;
  2. Utilize simbolismo significativo;
  3. Utilize de 2 a 3 cores básicas;
  4. Sem letras ou selos. A bandeira deve poder ser vista de longe, e, se você tem que escrever algo para as pessoas entenderem do que é a bandeira, seu simbolismo é falho;
  5. A bandeira deve ser distinta ou relacionada. Tudo bem que a bandeira demirromântica seja parecida com a demissexual, mas não há necessidade de quase todas as bandeiras de orgulho serem compostas de faixas horizontais, só por causa da bandeira gay e/ou das subsequentes.

É claro, não necessariamente as bandeiras tenham que seguir estas regras para serem boas. A bandeira do País de Gales é amada mesmo que seu dragão seja complexo demais para ser desenhado da memória. A bandeira da África do Sul é memorável mesmo que tenha mais do que 3 cores – e o mesmo vale para a bandeira gay.

O problema das bandeiras de orgulho é que elas acabam caindo em certos clichês. Por exemplo, rosa para meninas/feminilidade, azul para homens/masculinidade, roxo para uma mistura entre os dois, ou para gêneros não-binários, amarelo ou verde para gêneros não-binários ou completamente fora do binário masculino/feminino, branco para neutralidade ou para gêneros não-binários. Faixas horizontais.

Quantas bandeiras seguem isto? Temos a bandeira transgênero, a bandeira pansexual, a bandeira polissexual, a bandeira trigênero, a bandeira genderflux… e isso sem mencionar cinza ou preto, que são outras cores comuns em bandeiras de gêneros.

Enquanto apenas utilizar estas cores com estas simbologias não seja algo tão ruim, quem cria certas bandeiras não se importa muito com o fator distinção.

Por exemplo, uma fuzmenina é uma menina trans que não sabe explicar porque pertence ao seu gênero. Uma endomenina é alguém cujo gênero possui flutuações, mas que nunca deixa de ser parcialmente uma menina. Mulheres trans e pessoas transfemininas são pessoas que foram designadas como homens ao nascimento, mas que são mulheres (mulheres trans), ou pessoas não-binárias cujo gênero e/ou apresentação são relacionados com feminilidade ou com ser mulher (pessoas transfemininas). Uma giramenina é alguém que possui múltiplos gêneros, um deles sendo o feminino, e a maioria sendo gêneros desconhecidos para a pessoa. Uma magimenina é alguém cuja maior parte do gênero é feminino, sendo que a outra parte do gênero pode ser outra coisa ou não existir. Uma anomenina é alguém que tem um gênero feminino que lentamente vai desaparecendo, e que eventualmente ressurge, sendo que ele vai desaparecer novamente. Uma entromenina é uma menina cujo gênero está em constante fase de deterioração, desaparecendo lentamente. Uma scorimenina é alguém cujo gênero flui entre três gêneros parecidos – neste caso, alguém cujo gênero flutua entre mulher, mulher não-binária e nanomulher, ou entre juxera, mulher agênero e demimulher, por exemplo.

Essas bandeiras são muito parecidas. Enquanto alguns destes gêneros sejam parecidos entre si, e todos tenham a ideia de menina, é muito fácil perder uma bandeira entre as outras, e é difícil de lembrar da composição da maior parte delas, especialmente as que possuem vários tons de rosa.

E então, existem bandeiras como estatimenina, necromenina, ou como esta outra bandeira para fuzmeninas. Estas bandeiras conseguem se distinguir mais, porém, elas acabam se tornando menos simples de serem reproduzidas, pelos seus resultados só terem sido obtidos por causa da existência de filtros digitais.

Agora, considerar: gênero-nulo, uma identidade para alguém cujo gênero não existe por não poder ser classificado. Sem gênero, uma identidade para quem não possui gênero, e que não gosta de utilizar termos como agênero para descrever sua falta de gênero. Xumgênero, uma identidade para quem não consegue classificar seu gênero, mas sem conseguir se contentar com isso. Verangênero, uma identidade para alguém cujo gênero muda sempre que este é identificado. Gênero-vago, uma identidade para pessoas neurodivergentes que não conseguem entender completamente seu gênero por causa de sua neurodivergência. Gênero-negativo, o estado de uma pessoa genderflux cujo gênero não existe no momento. E gênero-cinza, alguém que possui um gênero fraco e/ou indeterminado.

Estas bandeiras são mais distinguíveis entre si, pelo uso de símbolos e/ou de designs alternativos. A maior parte destas bandeiras possuem cores simples e fáceis de lembrar, e não são tão difíceis de serem desenhadas à mão.

Uma análise mais direta de certas bandeiras:

Bandeira de orgulho de ser um homem/menino não-binário

Identidade: Homem/menino não-binário. Uma pessoa não-binária que possui afinidades com masculinidade e/ou com o gênero masculino de alguma maneira.

Prós:

  • A simbologia faz certo sentido; verde é uma das cores mais associadas a meninos, depois do azul; o cinza dá a ideia de transição, de entre uma coisa e outra (neste caso, entre uma identidade binária e uma não-binária);
  • As cores combinam;
  • Não é a bandeira mais fácil de lembrar, mas também não é super difícil de se lembrar das cores. É possível de ser desenhada da memória.

Contras:

  • Possui um design parecido com várias outras bandeiras, como agênero e demihomem;
  • Não há a necessidade para tantas faixas, o mesmo conceito poderia ser resumido em 3, 4 ou 5 faixas.

Bandeira de orgulho de ser gravgênero

Identidade: Gravgênero. Alguém cujo gênero é intenso, forte.

Prós:

  • As estrelas deixam a bandeira distinguível entre outras;
  • Os elementos da bandeira (faixas e estrelas) não são difíceis de serem desenhados;
  • As cores combinam entre si, o que deixa a bandeira agradável de ser olhada.

Contras:

  • As cores verde e roxo não lembram força, e o degradê no fundo não dá a sensação de algo intenso e estável, e sim de algo que muda de intensidade, de transição;
  • Como são 5 tons de roxo diferentes no fundo, fica difícil de lembrar quais as cores exatas da bandeira;
  • O fundo com variação de cor é completamente dispensável. Se o fundo fosse só em um tom de roxo, o design seria mais limpo;
  • Por que três estrelas, com uma maior do que as outras? Parece-me que uma estrela maior faria um trabalho melhor.

Bandeira de orgulho de ser gênero-branco

Identidade: Gênero-branco. Alguém que só consegue pensar num espaço em branco, em relação ao próprio gênero.

Prós:

  • Elementos simples;
  • Cores simples e que combinam;
  • Elementos lembram um pouco da identidade. Estas cores são frequentemente utilizadas para identidades sem gênero, ou de gênero indefinido;
  • Design original, não é composto apenas por listras.

Contras:

  • Proporções podem ser um pouco difíceis de serem lembradas, já que não existem guias;
  • Cores não se destacam muito, mesmo que isso não seja um grande problema, já que a identidade em si faz referência a um conceito de “em branco”.

Enfim, meu ponto com esta postagem é: quando for fazer ou pedir para fazerem uma bandeira, lembre-se de fazer algo que pode ser desenhado facilmente no papel, e, de preferência, com cores originais a ponto de você poder desenhar algo referenciando a paleta de cores da bandeira.

Por que não utilizar o termo LGBTfobia?  4

Esta postagem foi escrita por certa discussão hoje, onde pessoas não entendiam o que havia de errado em resumir as opressões sofridas pela comunidade LGBTQIAP+ em LGBTfobia.

O uso de fobia para descrever opressão e discriminação é controverso por seu potente capacitismo, em relação a pessoas que realmente possuem fobias. É por isso que não uso termos como transfobia e afobia em geral. Porém, esta postagem irá focar apenas na ideia de tentar incluir um monte de discriminações contra identidades diferentes em uma só palavra.

Bem, vamos começar apontando o óbvio: é só LGBT ali. LGBTfobia não considera a existência de diadismo (intersexofobia), amatonormatividade (arofobia) ou alossexismo (acefobia).

Admito que bifobia normalmente é um termo generalizado para quem sofre com monossexismo. Os ataques que pessoas pan, omni ou outras que sejam atraídas por multiplos gêneros sofrem não são muito diferentes do que os ataques que pessoas bi sofrem, com a exceção do problema adicional de reclamarem que são termos desnecessários, apenas para “floquinhos de neve especiais”. Também há o exorsexismo que acompanha a intolerância em relação a identidades não-binárias, que não é especificamente direcionada para pessoas multi que se dizem atraídas por gêneros não-binários.

Embora a maioria das pessoas em espaços LGBT nem saiba da existência de gêneros não-binários, acredito que dê pra forçar a barra e dizer que consideraram exorsexismo (discriminação contra pessoas não-binárias) dentro de transfobia.

Admito também que LGBTfobia pode até ser um nome relativamente adequado para quando ultraconservadores falam mal “dos LGBTs”, quando não sabem a diferença de identidade de gênero e de orientação sexual, ou quando sabem e colocam tudo no mesmo saco. E, bom, normalmente falam de “homens beijando homens”, de “mulheres beijando mulheres”, e de “pessoas que acham que podem mudar de sexo”. Realmente não falam de algo que teria a ver diretamente com pessoas intersexo, assexuais ou arromânticas. Porém, se estes grupos tivessem mais visibilidade, com certeza iriam falar publicamente contra eles, ao invés de utilizarem cirurgias forçadas e estupros corretivos de forma que a discriminação seja invisível.

Ok, temos aí o esquecimento de grupos que certamente sofrem com a di/cis/heteronormatividade! O que mais?

LGBTfobia ignora as causas individuais de grupos marginalizados na comunidade LGBT+.

Pessoas bi compõem mais ou menos 50% da comunidade LGB+. Ainda assim, poucos são os fundos que vão especificamente para causas bi. Mesmo que pessoas bi sejam estatisticamente mais discriminadas em relação a gays e lésbicas. Até terapeutas “LGBT-friendly” tentam convencer pessoas bi de que na verdade são hétero ou gay, e bissexualidade é listada como sintoma de diversas doenças mentais.

O B e o T da sigla só foram adicionados mais tarde, mas isso não significa que gays e lésbicas realmente toleram pessoas bi e trans. [x] [x]

Monossexismo é um grande problema, mas é extremamente difícil ver alguém falando de monossexismo ou de bifobia de forma que não seja superficial: ou como se não fosse diferente de heterossexismo (ou de ódio específico contra pessoas que são atraídas pelo mesmo gênero), ou mencionando episódios de violência contra pessoas bissexuais, mas sem analisar como alguém pode discriminar especificamente pessoas bi/multi.

Pessoas bi/multi muitas vezes sofrem abuso por serem atraídas por mais de um gênero, mas a comunidade gay e lésbica insiste que é só pela atração pelo mesmo gênero, e que pessoas bi são menos discriminadas, por possuírem o privilégio de se casarem com alguém de um gênero aceitável pela sociedade. No entanto, as estatísticas não mostram nenhum privilégio, muito pelo contrário.

O ponto é: bifobia não é discutida quando só se põe em foco a “LGBTfobia”. Discriminação contra pessoas bi/multi conta como LGBTfobia quando é violência pela pessoa estar com alguém do mesmo gênero; conta nos números de violência contra pessoas LGBT. Mas e quando o assunto é pessoas bi/multi – em sua grande maioria, mulheres – serem abusadas por parceires de qualquer gênero pelo medo de traição, ou quando são estupradas para convencê-las a “escolher um lado”? Isso vai pra baixo do tapete.

Portanto, “LGBTfobia” apaga a discriminação específica contra pessoas multi, e faz com que pessoas não falem de monossexismo. Só falam que a discriminação foi por “ser LGBT”, não especificamente por “ser bi/multi”, e agem como se as outras pessoas da sigla corressem os mesmos riscos que uma pessoa bi/multi corre. Além de, claro, ganharem fundos para combater discriminação em cima disso, que, por sua vez, não é gasto com causas de pessoas bi/multi.

Um caso similar ocorre com pessoas trans.

Mulheres trans são um dos grupos que corre mais risco de ter AIDS, mas são frequentemente excluídas de programas feitos para combatê-la. Fundos de saúde LGBTQ+ gastam muito mais em homens LGB+, com mulheres LGB+ em segundo lugar com menos da metade do que é gasto com homens, e pessoas trans em terceiro lugar. (Pessoas intersexo ganham uma quantidade ridiculamente pequena de fundos, mas hey, estamos falando de LGBTfobia, não de LGBTIfobia!)

Mortes também são um problema. Este estudo mostra que pessoas trans possuem 50% a mais de risco de serem assassinadas do que gays ou lésbicas (ainda que, neste caso, se só contar o Brasil, são 9 assassinatos de pessoas trans contra 8 de gays e 3 de lésbicas). Este estudo feito em relação a assassinatos de pessoas lésbicas, gay, bi, trans, queer e soropositivas teve como resultados 45% de assassinatos de mulheres trans, e 87% de assassinatos de pessoas de cor (não-brancas).

Este reporta que, entre pessoas assassinadas por serem LGBTQ ou soropositivas, 53% eram mulheres trans, e 73% eram pessoas de cor.

Quase metade destas mortes de pessoas LGBT+ nas Américas foram mulheres trans. O mesmo estudo fala que mais da metade das 300 mortes no Brasil foram de mulheres trans (“mulheres trans” aqui provavelmente inclui outras pessoas transfemininas: pessoas designadas como homens ao nascimento que possuem alguma identidade relacionada com feminilidade ou com o gênero feminino, como muitas travestis).

Ou seja, ativismo que se apropria destas mortes, como se pessoas LGB+ cis e brancas tivessem a mesma chance de serem assassinadas do que mulheres trans negras, é extremamente desrespeitoso.

Também houve o caso do filme Stonewall. Stonewall era um bar para as pessoas mais indesejadas da comunidade LGBT+; pessoas trans, homens gay afeminados, lésbicas masculinizadas, pessoas sem-teto, pessoas de cor, profissionais do sexo, e assim vai. Porém, o filme preferiu inventar um personagem principal mais aceitável para o público hétero – um homem gay, cis e branco. O filme também deixou de contratar mulheres trans para contratar homens cis para fazer o papel delas. E, ao invés de mostrar Sylvia Rivera, mostra uma personagem similar, talvez porque a presença dela no ato seja contestada por algumes.

Isso pode não ser superficialmente “LGBTfóbico”, afinal, é um filme sobre uma parte do movimento gay, e es personagens fictícies ainda são LGBT+. Porém, esta ainda foi uma jogada cissexista e racista, uma vez que deixa implícito que gêneros são só roupas pela contratação de homens cis, e que pessoas transfemininas de cor não são simpáticas o suficiente para que um filme sobre um evento histórico aonde elas foram protagonistas tenha uma protagonista que seja coerente naquele contexto.

Lésbicas também sofrem discriminação específica. Aqui tem uma anedota pessoal de lésbicas serem convidadas a sair de um bar gay. Lésbicas enfrentam um mundo onde a sexualidade masculina é considerada mais importante, e onde histórias com lésbicas são feitas para consumos de homens hétero. Lésbicas são sexualizadas e fetichizadas publicamente.

Pessoas trans, meninas bi e lésbicas estatisticamente sofrem mais na escola do que meninos bi ou gay.

Enquanto falarmos só sobre LGBTfobia, a discussão não vai passar do superficial.

Homens gays e lésbicas ainda vão perpetuar discriminação contra pessoas bi e trans. E vão se dizer mais oprimidas para a sociedade em geral, mostrando como prova o quanto de discriminação pessoas LGBT em geral sofrem.

Lésbicas ainda vão acusar mulheres trans de serem predadoras sexuais. E, através de teoria feminista radical, vão incentivar legislações como as da Carolina do Sul, onde pessoas trans não podem mais ir ao banheiro que “não corresponde com seus genitais”.

Homens gays e brancos ainda vão excluir mulheres lésbicas, bi e trans, além de qualquer pessoa LGBTQIAP+ de cor, de espaços e movimentos, por não serem aceitáveis o suficiente.

Pessoas brancas vão organizar protestos em áreas nobres contra a LGBTfobia, citar as quantidades de mortes causadas por LGBTfobia, e comover as pessoas com o quanto é perigoso ser LGBT+, quando a maioria destas mortes teve como alvo grupos específicos.

Pessoas vão dizer o quanto é importante lutar contra a LGBTfobia, mas vão falar só de homofobia, porque supostamente é o “ponto em comum”.

Pessoas vão dizer que protestos e paradas são bons para conscientizar a população de que existimos, enquanto a maior parte da população não sabe o que é uma pessoa transgênero, não-binária, ou até mesmo o que exatamente é ser bissexual. Quem dirá saberem o que é uma pessoa pan, arromântica, intersexo ou demigênero.

Celebram Stonewall, enquanto tentam passar a mensagem de que são iguais a pessoas di/cis/hétero, com “a exceção de quem amamos”.

Por uma normalização da linguagem LGBTQIAP+  0

Aviso de conteúdo: Menção de violência transmisógina e de assuntos que podem evocar disforia. Intersexofobia, transfobia e ignorância em relação a identidades incomuns no geral.

Há um trabalho sério de educação a ser feito em volta da linguagem que utilizamos no dia-a-dia. Enquanto algumas pessoas – não qualquer pessoa, mas pessoas em grupos ativistas ou em universidades – já incorporam, de certa forma, a possibilidade de alguém ter um relacionamento com alguém do mesmo gênero, é bem mais raro haver a inclusão de outras identidades na linguagem do dia-a-dia.

Muites utilizam o x em redes sociais para simbolizar neutralidade, em frases como “todxs contra a violência”, mas, ao falar na vida real, utilizam “todos e todas”, como se estivessem sendo completamente inclusives por incluírem “ambos os gêneros”.

Muitas mulheres comentam que suas vidas seriam melhores se tivessem nascido com pênis, como se não houvesse uma enorme quantidade de assassinatos de mulheres trans e de outras pessoas de identidades transfemininas, por estas serem mulheres ou pessoas confundidas com mulheres que nasceram com pênis.

Muitas pessoas tratam de gravidez, de aborto e de menstruação como se fossem exclusivos de mulheres, ou deixam implícito que toda mulher conhece estas coisas, o que exclui diversas pessoas trans e intersexo.

Pessoas não-binárias não podem se apresentar e dizer seus pronomes e ter gente entendendo o que está acontecendo. E, se entendem, vão quase sempre enfrentar comentários sobre o quanto é difícil se referir a alguém com pronomes que não lhes vem à mente para a pessoa.

Pessoas de qualquer identidade mais incomum, não importa o quanto refletiram sobre serem de certa identidade, vão encontrar pessoas perguntando se possuem certeza, e se isso não é só uma vontade de querer ser especial ou de querer se encaixar, se contarem sobre sua identidade para outras pessoas.

Deveríamos ter grupos LGBTQIAP+ lutando por mais visibilidade, de formas concretas como panfletos e workshops. Isso é uma questão muito mais simples do que pautas vagas de acabar com a homofobia/transfobia, e muito mais efetiva do que declarações de repúdio ao bullying. Estas são coisas importantes também, mas não devem ser as únicas pautas que mobilizam a comunidade.