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“Por que usar [y] ao invés de [x]?”  0

É muito comum haverem dúvidas – muitas vezes por parte de pessoas que querem simplificar rótulos LGBTQIAP+ por não quererem que pessoas possam definir a si mesmas, ou por parte de pessoas que querem se mostrar mais respeitáveis do que “esses aí que querem ser especiais e criam palavras novas o tempo todo” – sobre o motivo de existirem “rótulos demais”, ou “rótulos redundantes”, para definir gênero e orientação.

Seguem os motivos para tais identidades:

a) Experiências separadas

A maioria das pessoas em comunidades assexuais nunca sente atração sexual ou vontade de fazer sexo. Afinal, é por isso que vão parar em comunidades assexuais!

Portanto, é natural que certas pessoas que tenham vontade de fazer sexo, sem sentir atração sexual (cupiossexuais), ou que pessoas que às vezes sentem atração sexual (gray-assexuais e outros termos do espectro assexual), criem seus próprios termos e comunidades.

O mesmo ocorre com outras identidades. Não que todas estas derivem das outras citadas, mas:

  • Muitas pessoas poli se identificam como tal porque bi é uma orientação muitas vezes utilizada ou atribuída a quem sente atração por “ambos os gêneros”, ou ainda, por “ambos os sexos”. Uma pessoa poli pode se identificar como bi, por sentir atração por dois ou mais gêneros, mas pode preferir uma comunidade que aceite mais a existência de gêneros não-binários.
  • Muitas pessoas que se identificam como omni, mas não como pan, o fazem porque pan é uma orientação descrita muitas vezes como “atração independentemente do gênero”. Pessoas omni podem aceitar que certas pessoas pan sentem atração por todos os gêneros sem “ignorar” o gênero, enquanto podem não querer uma conotação errônea para sua orientação.
  • Uma das definições de neutrois é “um gênero separado do masculino e do feminino”. Mesmo assim, outra definição de neutrois é “um gênero completamente neutro”. Pessoas que não sentem que seu gênero é neutro podem preferir se identificar como genderqueer ou maverique, por exemplo.
  • Gênero-fluido é uma expressão que serve para qualquer pessoa cujo gênero muda, mas como pessoas podem ter experiências completamente diferentes em relação a esta fluidez, existem termos como condigênero (um gênero experienciado sob circunstâncias específicas), eafluíde (alguém que tem seu gênero fluido apenas entre gêneros não-binários), gênero-fluxo (alguém que experiencia mudanças na intensidade de gênero), fluxofluide (alguém cuja identidade muda tanto em gênero quanto em intensidade) e bigênero-fluido (alguém cujo gênero é fluido entre apenas dois gêneros), entre outros.

b) Os termos podem ter sido criados na mesma época

Às vezes, não tem a ver com algum tipo de sentimento em relação ao grupo ou em relação a outras pessoas desconsiderarem outros significados da identidade. Como a comunidade LGBTQIAP+ não é unificada, termos diferentes e parecidos podem pipocar em diferentes regiões, especialmente se não há um espaço de tempo grande o suficiente para um dos termos se espalhar.

Fica a critério de cada ume qual o termo/descrição que prefere. Mas é bom notar que estes termos normalmente são ligeiramente diferentes um do outro. Por exemplo, aporagênero e maverique são termos que surgiram mais ou menos na mesma época, e são ambos gêneros completamente separados de gêneros masculinos, femininos e/ou neutros. No entanto, a definição de maverique coloca ênfase na certeza sobre o próprio gênero e na independência pessoal de maveriques, enquanto aporagênero só é descrito como um gênero que certamente existe, mas que não é nem masculino, nem feminino, nem neutro.

c) Os termos podem ajudar pessoas a se entenderem melhor

Uma pessoa pode nunca pensar em si mesma como bissexual, mesmo que já tenha tido atrações por pessoas de vários gêneros, mas não o tempo todo. Mas tal pessoa pode acabar descobrindo o termo abrossexual, e descobrir que existe uma palavra para o que esta pessoa está sentindo! Talvez, de agora em diante, a pessoa até consiga dizer que é bissexual, para simplificar as coisas, porque já sabe que sua experiência é uma experiência multissexual válida.

Alguns outros exemplos de como isso pode acontecer:

  • Uma pessoa não se sente arromântica o suficiente e nem allorromântica o suficiente, e só consegue se entender quando descobre o termo akoirromântique.
  • Uma mulher não sente que é não-binária o suficiente, mas também sente que não é cis. Passa a se identificar como mulher não-binária ou como magimulher.
  • Um homem trans sofre com disforia e certamente sabe que não é uma mulher, se identificando como homem porque acha que não existem mais opções. Posteriormente, descobre que é neutrois.
  • Uma pessoa não consegue entender o conceito de gênero e como isso pode ser importante, mas gosta de utilizar roupas “masculinas” e por isso se identifica como homem ao invés de agênero, já que não consegue pensar em se apresentar de forma “andrógena”. Após descobrir o termo libragênero, esta pessoa descobre ser libramasculina.
  • Uma pessoa não quer se chamar de bissexual porque não possui atração por homens, mesmo que esta pessoa já tenha tido atração por pessoas agênero, maveriques e mulheres. Essa pessoa acaba se identificando como polissexual e como nãomensexual.
  • Uma pessoa pensa em si mesma como assexual, mas eventualmente sente atração sexual por alguém. A pessoa teme ter sido apenas uma fase ou uma repressão, e não sabe mais seu lugar na comunidade. Eventualmente, esta pessoa descobre que há pessoas assexuais que sentem atração com algumas condições, como pessoas gray-assexuais, demissexuais, e amicussexuais.

Existem pessoas que tentam categorizar todos os termos em “úteis” e “inúteis”, ou que tentam redefinir termos sem as comunidades que utilizam esses termos concordarem, para sua própria conveniência. Existem pessoas que tentam pintar certos termos como monossexistas, heterossexistas ou cissexistas, quando, enquanto podem ser utilizados destas maneiras, podem também ser termos úteis para quem quer descrever suas orientações.

Por exemplo, os termos heteroflexível e homoflexível podem ser monossexistas, para quem não quer se identificar como bi por pessoas bi “não conseguirem escolher um gênero logo”, ou por não quererem se associar com promiscuidade, ou por não quererem “trair” a própria orientação. Porém, são termos úteis para quem raramente sente atração em relação a certo gênero, e acha que isso não é destacado o suficiente com bi ou poli.

O termo bi também recebe reclamações de vários lados. Pessoas bi são acusadas de “apropriar” as orientações poli, pan e omni, por elas caberem na definição de “dois ou mais gêneros”, ou de afirmar com sua orientação que só existem dois gêneros. A comunidade bi, porém, se define como atração por mais de um gênero por décadas, antes mesmo de outras orientações multissexuais serem definidas.

E isso não significa que pessoas não possam preferir colocar ênfase em sua atração por muitos/todos gêneros, utilizando termos como poli, penúlti, pan e omni.

O objetivo desta postagem é mostrar que, desde que a pessoa se sinta confortável com sua identidade, não importa se outra identidade é mais simples de entender, ou mais específica para a situação. Uma pessoa pode se identificar como bi, pan e abro em diferentes situações, ou ao mesmo tempo, e isto não está errado. Uma pessoa pode só querer se identificar como não-binária e/ou como transgênero após entender exatamente como é seu gênero, e isto não está errado.

Por que não utilizar o termo LGBTfobia?  4

Esta postagem foi escrita por certa discussão hoje, onde pessoas não entendiam o que havia de errado em resumir as opressões sofridas pela comunidade LGBTQIAP+ em LGBTfobia.

O uso de fobia para descrever opressão e discriminação é controverso por seu potente capacitismo, em relação a pessoas que realmente possuem fobias. É por isso que não uso termos como transfobia e afobia em geral. Porém, esta postagem irá focar apenas na ideia de tentar incluir um monte de discriminações contra identidades diferentes em uma só palavra.

Bem, vamos começar apontando o óbvio: é só LGBT ali. LGBTfobia não considera a existência de diadismo (intersexofobia), amatonormatividade (arofobia) ou alossexismo (acefobia).

Admito que bifobia normalmente é um termo generalizado para quem sofre com monossexismo. Os ataques que pessoas pan, omni ou outras que sejam atraídas por multiplos gêneros sofrem não são muito diferentes do que os ataques que pessoas bi sofrem, com a exceção do problema adicional de reclamarem que são termos desnecessários, apenas para “floquinhos de neve especiais”. Também há o exorsexismo que acompanha a intolerância em relação a identidades não-binárias, que não é especificamente direcionada para pessoas multi que se dizem atraídas por gêneros não-binários.

Embora a maioria das pessoas em espaços LGBT nem saiba da existência de gêneros não-binários, acredito que dê pra forçar a barra e dizer que consideraram exorsexismo (discriminação contra pessoas não-binárias) dentro de transfobia.

Admito também que LGBTfobia pode até ser um nome relativamente adequado para quando ultraconservadores falam mal “dos LGBTs”, quando não sabem a diferença de identidade de gênero e de orientação sexual, ou quando sabem e colocam tudo no mesmo saco. E, bom, normalmente falam de “homens beijando homens”, de “mulheres beijando mulheres”, e de “pessoas que acham que podem mudar de sexo”. Realmente não falam de algo que teria a ver diretamente com pessoas intersexo, assexuais ou arromânticas. Porém, se estes grupos tivessem mais visibilidade, com certeza iriam falar publicamente contra eles, ao invés de utilizarem cirurgias forçadas e estupros corretivos de forma que a discriminação seja invisível.

Ok, temos aí o esquecimento de grupos que certamente sofrem com a di/cis/heteronormatividade! O que mais?

LGBTfobia ignora as causas individuais de grupos marginalizados na comunidade LGBT+.

Pessoas bi compõem mais ou menos 50% da comunidade LGB+. Ainda assim, poucos são os fundos que vão especificamente para causas bi. Mesmo que pessoas bi sejam estatisticamente mais discriminadas em relação a gays e lésbicas. Até terapeutas “LGBT-friendly” tentam convencer pessoas bi de que na verdade são hétero ou gay, e bissexualidade é listada como sintoma de diversas doenças mentais.

O B e o T da sigla só foram adicionados mais tarde, mas isso não significa que gays e lésbicas realmente toleram pessoas bi e trans. [x] [x]

Monossexismo é um grande problema, mas é extremamente difícil ver alguém falando de monossexismo ou de bifobia de forma que não seja superficial: ou como se não fosse diferente de heterossexismo (ou de ódio específico contra pessoas que são atraídas pelo mesmo gênero), ou mencionando episódios de violência contra pessoas bissexuais, mas sem analisar como alguém pode discriminar especificamente pessoas bi/multi.

Pessoas bi/multi muitas vezes sofrem abuso por serem atraídas por mais de um gênero, mas a comunidade gay e lésbica insiste que é só pela atração pelo mesmo gênero, e que pessoas bi são menos discriminadas, por possuírem o privilégio de se casarem com alguém de um gênero aceitável pela sociedade. No entanto, as estatísticas não mostram nenhum privilégio, muito pelo contrário.

O ponto é: bifobia não é discutida quando só se põe em foco a “LGBTfobia”. Discriminação contra pessoas bi/multi conta como LGBTfobia quando é violência pela pessoa estar com alguém do mesmo gênero; conta nos números de violência contra pessoas LGBT. Mas e quando o assunto é pessoas bi/multi – em sua grande maioria, mulheres – serem abusadas por parceires de qualquer gênero pelo medo de traição, ou quando são estupradas para convencê-las a “escolher um lado”? Isso vai pra baixo do tapete.

Portanto, “LGBTfobia” apaga a discriminação específica contra pessoas multi, e faz com que pessoas não falem de monossexismo. Só falam que a discriminação foi por “ser LGBT”, não especificamente por “ser bi/multi”, e agem como se as outras pessoas da sigla corressem os mesmos riscos que uma pessoa bi/multi corre. Além de, claro, ganharem fundos para combater discriminação em cima disso, que, por sua vez, não é gasto com causas de pessoas bi/multi.

Um caso similar ocorre com pessoas trans.

Mulheres trans são um dos grupos que corre mais risco de ter AIDS, mas são frequentemente excluídas de programas feitos para combatê-la. Fundos de saúde LGBTQ+ gastam muito mais em homens LGB+, com mulheres LGB+ em segundo lugar com menos da metade do que é gasto com homens, e pessoas trans em terceiro lugar. (Pessoas intersexo ganham uma quantidade ridiculamente pequena de fundos, mas hey, estamos falando de LGBTfobia, não de LGBTIfobia!)

Mortes também são um problema. Este estudo mostra que pessoas trans possuem 50% a mais de risco de serem assassinadas do que gays ou lésbicas (ainda que, neste caso, se só contar o Brasil, são 9 assassinatos de pessoas trans contra 8 de gays e 3 de lésbicas). Este estudo feito em relação a assassinatos de pessoas lésbicas, gay, bi, trans, queer e soropositivas teve como resultados 45% de assassinatos de mulheres trans, e 87% de assassinatos de pessoas de cor (não-brancas).

Este reporta que, entre pessoas assassinadas por serem LGBTQ ou soropositivas, 53% eram mulheres trans, e 73% eram pessoas de cor.

Quase metade destas mortes de pessoas LGBT+ nas Américas foram mulheres trans. O mesmo estudo fala que mais da metade das 300 mortes no Brasil foram de mulheres trans (“mulheres trans” aqui provavelmente inclui outras pessoas transfemininas: pessoas designadas como homens ao nascimento que possuem alguma identidade relacionada com feminilidade ou com o gênero feminino, como muitas travestis).

Ou seja, ativismo que se apropria destas mortes, como se pessoas LGB+ cis e brancas tivessem a mesma chance de serem assassinadas do que mulheres trans negras, é extremamente desrespeitoso.

Também houve o caso do filme Stonewall. Stonewall era um bar para as pessoas mais indesejadas da comunidade LGBT+; pessoas trans, homens gay afeminados, lésbicas masculinizadas, pessoas sem-teto, pessoas de cor, profissionais do sexo, e assim vai. Porém, o filme preferiu inventar um personagem principal mais aceitável para o público hétero – um homem gay, cis e branco. O filme também deixou de contratar mulheres trans para contratar homens cis para fazer o papel delas. E, ao invés de mostrar Sylvia Rivera, mostra uma personagem similar, talvez porque a presença dela no ato seja contestada por algumes.

Isso pode não ser superficialmente “LGBTfóbico”, afinal, é um filme sobre uma parte do movimento gay, e es personagens fictícies ainda são LGBT+. Porém, esta ainda foi uma jogada cissexista e racista, uma vez que deixa implícito que gêneros são só roupas pela contratação de homens cis, e que pessoas transfemininas de cor não são simpáticas o suficiente para que um filme sobre um evento histórico aonde elas foram protagonistas tenha uma protagonista que seja coerente naquele contexto.

Lésbicas também sofrem discriminação específica. Aqui tem uma anedota pessoal de lésbicas serem convidadas a sair de um bar gay. Lésbicas enfrentam um mundo onde a sexualidade masculina é considerada mais importante, e onde histórias com lésbicas são feitas para consumos de homens hétero. Lésbicas são sexualizadas e fetichizadas publicamente.

Pessoas trans, meninas bi e lésbicas estatisticamente sofrem mais na escola do que meninos bi ou gay.

Enquanto falarmos só sobre LGBTfobia, a discussão não vai passar do superficial.

Homens gays e lésbicas ainda vão perpetuar discriminação contra pessoas bi e trans. E vão se dizer mais oprimidas para a sociedade em geral, mostrando como prova o quanto de discriminação pessoas LGBT em geral sofrem.

Lésbicas ainda vão acusar mulheres trans de serem predadoras sexuais. E, através de teoria feminista radical, vão incentivar legislações como as da Carolina do Sul, onde pessoas trans não podem mais ir ao banheiro que “não corresponde com seus genitais”.

Homens gays e brancos ainda vão excluir mulheres lésbicas, bi e trans, além de qualquer pessoa LGBTQIAP+ de cor, de espaços e movimentos, por não serem aceitáveis o suficiente.

Pessoas brancas vão organizar protestos em áreas nobres contra a LGBTfobia, citar as quantidades de mortes causadas por LGBTfobia, e comover as pessoas com o quanto é perigoso ser LGBT+, quando a maioria destas mortes teve como alvo grupos específicos.

Pessoas vão dizer o quanto é importante lutar contra a LGBTfobia, mas vão falar só de homofobia, porque supostamente é o “ponto em comum”.

Pessoas vão dizer que protestos e paradas são bons para conscientizar a população de que existimos, enquanto a maior parte da população não sabe o que é uma pessoa transgênero, não-binária, ou até mesmo o que exatamente é ser bissexual. Quem dirá saberem o que é uma pessoa pan, arromântica, intersexo ou demigênero.

Celebram Stonewall, enquanto tentam passar a mensagem de que são iguais a pessoas di/cis/hétero, com “a exceção de quem amamos”.