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Presumir gênero é inerentemente antitrans?  0

Presumir gênero é inerentemente antitrans?

Aviso de conteúdo: Esta é uma postagem sobre presunção de gênero. Ela é contra a presunção de identidades de gênero, mas como o público-alvo são pessoas que se acham justificadas em presumir gênero, ela menciona exemplos que podem machucar quem lida com disforia de gênero ou com questões similares.

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Queerspectivas 3: Não-binaridade e narrativas trans  0

Queerspectivas é uma série de transmissões ao vivo (que depois são gravadas e postadas) feitas com o objetivo de pessoas com certas identidades poderem falar sobre suas próprias experiências sem terem que depender de painéis conduzidos por pessoas que não fazem parte do grupo, ou que são voltados a grupos completamente alheios às questões tratadas na transmissão.

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Licença: CC BY-NC-SA 4.0

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Não temos ninguém para transcrever Queerspectivas no momento, mas entre em contato caso você queira fazer isso ou tenha feito uma legenda ou transcrição!

Como expressar linguagem em eventos físicos LGBTQIAPN+  0

Buttons contendo diversos conjuntos de linguagem por cima de uma série de folhas de adesivos que também contém diversos conjuntos de linguagem.

(Nota: Caso você esteja procurando por um texto mais básico que explique o que são conjuntos de linguagem pessoal, sugiro este texto se você quiser algo mais resumido, e este texto se você quiser algo mais completo.)

Eventos físicos são boas oportunidades de oferecer espaços de expressão que muitas vezes não existem na escola, no trabalho, na família ou em outros ambientes. Esses espaços podem ser úteis para trocar experiências, ajudar no processo de questionamento das próprias identidades, normalizar a existência de pessoas LGBTQIAPN+, trocar contatos, fazer amizades, etc.

Uma questão importante quando se tem interação direta entre pessoas é a da linguagem. Na maior parte dos ambientes, ao menos no período no qual este texto está sendo publicado, nenhum tipo de neutralização da linguagem sequer é considerada, e pessoas se referem entre si presumindo que alguém é “feminine” e portanto “deveria aceitar” a/ela/a, ou que alguém é “masculine” e portanto “deveria aceitar” o/ele/o.

Isso acaba por maldenominar (errar a linguagem e/ou o gênero de) muitas pessoas. Às vezes é só a pessoa corrigir que as outras respeitam, mas muitas vezes nem isso é respeitado. Por isso, em alguns lugares se tornou prática se apresentar já falando a própria linguagem, ou usar algum adesivo ou crachá com a própria linguagem. E isso vale para todes, não só pra quem não usa a linguagem que seria presumida no dia-a-dia, justamente para normalizar a ideia de que linguagem não deve ser presumida.

Mas então, como isso funciona? Como podemos incluir a linguagem como uma informação importante, excluíndo o menor número de pessoas possível?

 

1) Métodos visuais constantes (crachás, adesivos, camisetas, buttons, etc.)

Essas ideias funcionam de forma similar, afinal são rótulos de identificação que a pessoa pode usar no evento e depois guardar, devolver ou jogar fora.

Questões que precisam ser pensadas ao usar esses métodos são:

  • Os materiais necessários (papel, adesivo, caneta, etc.) precisam ser distribuídos na entrada, já que as pessoas podem não lembrar ou ficar com preguiça de trazer os próprios; especialmente quem acha que “é bobagem”.
  • A linguagem precisa estar disposta de forma que todes possam utilizá-la. Por exemplo, colocar opções pré-prontas como “masculina”/”feminina”/”neutra”/”outras” prioriza pessoas masculinas que usam o/ele/o e pessoas femininas que usam a/ela/a, enquanto pessoas neutras que usam o/ele/o, pessoas femininas que usam a/ila/e e pessoas que querem especificar sua linguagem além de “neutra” ou “outras”, entre outros casos, não são corretamente contempladas dentro dessas opções. Colocar um campo para gênero ao invés de linguagem também não ajuda a identificar a linguagem de pessoas não-binárias e/ou que não usam os conjuntos normalmente associados a suas identidades de gênero.
  • Pessoas precisam ser ensinadas a ler e usar sistemas de conjuntos que não sejam excludentes de pessoas que não usam “conjuntos óbvios”. Alguém que pensa que é só colocar sua linguagem como “ele/dele” ou como “feminina” pode não saber o que fazer quando ver alguém com “ze/elz/e” ou “o/ele/e”, e isso é um problema. Um panfleto informativo ou um exemplo junto ao preenchimento podem ajudar.
  • Como as pessoas no evento serão lembradas de que devem sempre checar a linguagem escrita, ao invés de presumirem? É um problema grande e comum existirem eventos aonde alguém pode preencher “-/elu/e” ou “ELD” em algum campo de conjunto ou pronome, sem ninguém perceber que esses termos são os que devem ser utilizados. Lembretes e repreensões podem ser bem-vindes.
  • Como serão tratadas as pessoas que não sinalizarem nada? Algumas pessoas podem não ter entendido o sistema, estarem se questionando e/ou estarem no armário. Se a pessoa colocou -/-/-, ok, nada deve ser utilizado, mas se a pessoa realmente não preencheu ou não está usando nada? O ideal seria evitar usar qualquer tipo de linguagem diferenciada, mas acho sempre bom preparar um conjunto neutro e avisar sobre ele. Por exemplo, um cartaz no local dizendo: Pessoas que não sinalizarem nenhum conjunto de linguagem serão tratadas por ê/elu/e.
  • Como será o apoio a quem usa mais de um conjunto? Pessoas que mudam de linguagem de tempos em tempos poderão ter mais de um crachá/adesivo? Se o registro for eletrônico, há como alguém mudar facilmente o conjunto que usa? Há espaço para colocar mais de um conjunto?
  • É necessário pensar nas pessoas que não vão conseguir ler ou enxergar as linguagens das outras pessoas; é recomendável que métodos orais também sejam utilizados em conjuntos com os visuais.

 

Prós de usar adesivos, pulseiras ou crachás:

  • Geralmente são feitos de forma barata e descartável, permitindo que pessoas mudem facilmente seus conjuntos e não precisem perder muito tempo escondendo o sinal de que não usam a linguagem esperada ao mudar de ambiente;
  • Geralmente possibilitam que as pessoas possam usar os conjuntos que quiserem, pois todo mundo tem que escrever os seus;
  • Ao serem preenchidos na hora do evento ou da inscrição, há como ensinar pessoas a usar conjuntos de linguagem mais completos e inclusivos;
  • Adesivos e crachás podem ser relativamente fáceis de ler em um evento de tamanho pequeno ou médio.

 

Contras de usar adesivos, crachás ou pulseiras:

  • Alguma forma de ensinar a escrever e interpretar conjuntos precisa ser providenciada;
  • O tamanho pode acabar sendo limitado e dificultando que pessoas leiam os conjuntos umas das outras, ou que alguém possa usar quantos conjuntos quiser;
  • Pode ficar muito óbvio que pessoas que podem querer esconder que não sabem que conjunto usar não estão usando o item;
  • Pulseiras podem ser difíceis de ler, por conta de sua posição.

 

Prós de usar buttons ou broches:

  • As pessoas podem utilizá-los em múltiplos eventos, por serem resistentes;
  • Caso a ideia seja fazer antes um item personalizado por pessoa, é possível incluir qualquer conjunto, desde que seja combinado com antecedência;
  • Ainda que não seja o método mais barato, pode ser uma opção viável para eventos menores;
  • Por ser algo que possa ser “bonitinho” ou “legal”, pode ser mais fácil convencer algumas pessoas a usar estes do que a usar crachás ou adesivos.

 

Contras de usar buttons ou broches:

  • Estes itens tendem a ser menores, e portanto mais difíceis de ler, do que crachás, adesivos ou camisetas; Como precisam ser feitos com antecedência, existe a possibilidade de algumas pessoas mudarem de ideia sobre seus conjuntos, caso os itens sejam personalizados;
  • Caso os buttons ou broches não sejam personalizados para cada pessoa, há a possibilidade de sobrarem ou faltarem buttons de certos conjuntos;
  • Pessoas que precisam de mais de um conjunto com certeza vão precisar de buttons/broches extras;
  • Algumas pessoas não usariam estes itens em lugares facilmente visíveis, por não quererem furar suas roupas ou seus acessórios.

 

Prós de usar camisetas:

  • É possível ter bastante espaço para deixar os conjuntos bem visíveis;
  • Caso sejam feitas com antecedência, é possível incluir quaisquer conjuntos;
  • Não há como alguém ter a desculpa de não querer estragar a roupa;
  • Dependendo da situação, pode ser possível usar as mesmas camisetas para múltiplos eventos.

 

Contras de usar camisetas:

  • É o método mais caro entre os citados, e eu só recomendaria para grupos pequenos com encontros frequentes;
  • Assim como buttons e broches, como camisetas precisam ser feitas com antecedência, ou há o risco de pessoas mudarem de ideia entre a confecção das camisetas e o evento, ou há o risco de faltarem e/ou sobrarem camisetas por não checarem quantas pessoas querem quais conjuntos;
  • Algum vestiário precisará ser providenciado, e muitas pessoas cisdissidentes não se sentem seguras em vestiários ou banheiros divididos entre gêneros binários;
  • É difícil de não notar alguém sem a camiseta, o que pode causar problemas para quem não quer declarar seu(s) conjunto(s).

 

2) Métodos ditos (apresentações, correções, perguntas na hora, etc.)

São métodos que não precisam de materiais prévios, e que só dependem de uma pessoa dizer para outras qual é a sua linguagem (ou qual é a linguagem de outra pessoa).

Apresentação seria quando alguém diz seu nome e outras informações relevantes para o evento, que neste caso incluiria um ou mais conjuntos de linguagem. Dependendo do evento, uma outra pessoa pode anunciar o nome e o conjunto de linguagem de cada pessoa. Correção seria esperar alguém maldenominar para corrigir com o conjunto certo. Perguntar na hora seria esperar até o momento de se referir a alguém para perguntar a palavra certa a ser utilizada.

Questões a serem pensadas em relação a isso:

  • É necessário incentivar pessoas a não presumirem linguagens alheias mesmo sem lembretes visuais de que nem todo mundo tem uma linguagem “óbvia”;
  • Ainda é bom ter uma explicação sobre artigo/pronome/final de palavra ou algum sistema inclusivo, para que pessoas não tenham que passar por invalidação ou vergonha;
  • Caso algum dos métodos específicos seja recomendado, isso precisa ficar bem explícito para todes es participantes do evento;
  • Para que pessoas com conjuntos de linguagem fora da norma se sintam confortáveis em dizer/afirmar seus conjuntos, é preciso haver pistas de que o ambiente é seguro para isso. Isso pode ser feito de várias formas, mas explicações sobre conjuntos de linguagem e presença forte de pessoas com conjuntos fora do padrão pode ajudar;
  • A pronúncia de palavras dentro da neolinguagem pode confundir algumas pessoas. Existe alguma forma de garantir que os conjuntos sejam entendidos por todo mundo, sem constranger pessoas para que soletrem seus conjuntos ou expliquem funções gramaticais?
  • Como não deixar pessoas “de linguagem óbvia” em sua zona de conforto, tirando sarro da ideia de que linguagem não é sempre óbvia, se recusando a dizer a própria linguagem e maldenominando outras pessoas, sem forçar pessoas a falar seus conjuntos caso realmente não queiram escolher ou culpar pessoas por não conseguirem lembrar dos conjuntos de todo mundo na sala?

 

Prós de uma apresentação que inclui conjunto(s) de linguagem:

  • Cada pessoa pode incluir que elementos quiser de seu conjunto de linguagem, e quantos conjuntos quiser, geralmente sem limites de espaço;
  • Pode ser mais fácil alguém que não quer revelar seu(s) conjunto(s) deixar de revelá-lo(s);
  • Ao pronunciar palavras, pessoas podem entender melhor como falar de quem usa neolinguagem sem terem que chutar se baseando em materiais que são somente visuais.

 

Contras de uma apresentação que inclui conjunto(s) de linguagem:

  • Não há como esperar que todas as pessoas lembrem dos conjuntos de todo mundo, especialmente se houverem várias pessoas que se apresentaram;
  • A inclusão do conjunto na apresentação pode pressionar alguém a escolher entre falar seu conjunto corretamente (e talvez explicá-lo) naquela hora ou arriscar ser maldenominade;
  • Por ser um formato mais livre, pessoas podem descrever seus conjuntos de formas pouco inclusivas ou complexas demais;
  • Pessoas podem esquecer ou omitir seus conjuntos com mais facilidade, o que pode desencorajar algumas pessoas de falarem de seus conjuntos, e/ou prejudicar pessoas que queriam ser chamadas por seus conjuntos.

 

Prós de corrigir pessoas quando ocorre maldenominação:

  • É mais fácil de alguém lembrar da linguagem certa para se referir a alguém quando há um lembrete na mesma hora sobre ela;
  • A maioria das pessoas não vai precisar falar seus conjuntos, já que eles só vão ser relevantes se alguma pessoa falar sobre outra, o que ajuda pessoas que não querem dizer seus conjuntos.

 

Contras de corrigir pessoas quando ocorre maldenominação:

  • Esperar ocorrer maldenominação para corrigir coloca esta responsabilidade somente na pessoa que está sendo maldenominada, o que vai afetar desproporcionalmente pessoas cuja linguagem não é presumida corretamente no dia-a-dia;
  • Enquanto é possível não usar linguagem específica para ninguém para não ocorrerem maldenominações, a maioria das pessoas não pensa em fazer isso, o que pode causar constrangimento para certas pessoas, que vão ter que ser corrigidas o tempo todo;
  • Algumas pessoas podem não se sentir à vontade de interromper a fala de alguém para corrigir, e algumas falas podem ser inadequadas de parar para corrigir, o que faz com que algumas maldenominações possam ficar sem ser corrigidas.

 

Prós de perguntar conjuntos para pessoas na hora de falar com elas/sobre elas:

  • A maioria das pessoas não é pressionada a falar de seus conjuntos;
  • Não há a necessidade de lembrar das apresentações de várias pessoas, apenas de lembrar de perguntar conjuntos na hora de falar sobre elas;
  • Não há nem a necessidade de presumir conjuntos, nem a necessidade de se forçar a não usar nenhuma linguagem específica.

 

Contras de perguntar conjuntos para pessoas na hora de falar com elas/sobre elas:

  • Caso a pessoa em questão vá embora, não vai mais ter como saber a linguagem da pessoa;
  • Pessoas que não querem revelar seus conjuntos podem ser mais intimidadas por esse jeito de lidar com a situação do que pelos outros;
  • Alguém pode ter que parar no meio de uma frase para perguntar a linguagem alheia, quebrando o ritmo de uma fala.

 

Mas e então, o que seria melhor?

O motivo desta postagem oferecer várias opções e seus prós e contras é que não existe uma solução perfeita, ao menos não enquanto existe a prática de presumir conjuntos de linguagem de outras pessoas.

Ao escolher que métodos serão utilizados, o tipo de evento deverá ser considerado: é um piquenique entre um grupo fechado aonde a maioria se conhece? É uma roda de conversa pública aonde poderão haver dezenas de pessoas que desconhecem o assunto? É um evento de premiação aonde não haverá muita interação entre quem está falando e a plateia? É um evento dividido entre várias atividades diferentes acontecendo ao mesmo tempo, sendo que haverá um mesmo período de confraternização para todes? É um evento aonde quase as mesmas pessoas se encontram toda semana ou todo mês, ou é provável que a maioria não se conheça?

Além do formato do evento, também pode ser importante considerar outros fatores: o quanto é esperado que quem vá para o evento saiba sobre o quanto é errado maldenominar pessoas? O quanto é esperado que vão saber lidar com o modelo de conjunto de linguagem escolhido? Ao levar em consideração com que roupas as pessoas vão para o evento, o quanto é provável que rejeitem adesivos, camisetas ou broches?

Eu diria que o fator mais importante nisso é que as organizações de eventos levem essa questão de conjuntos de linguagem a sério, a ponto de oferecer para todes es participantes explicações efetivas sobre conjuntos e sobre não presumi-los. Para que maldenominações, piadas com neolinguagem e descaso com explicações acerca de linguagem pessoal parem de ser norma, as organizações dos eventos precisam pensar em como vão lidar com estes problemas, e não só esperar que o oferecimento de crachás, adesivos ou possibilidade de falar dos próprios conjuntos enquanto cada pessoa se apresenta vá magicamente fazer com que pessoas com conjuntos de linguagem “inesperados” sejam respeitadas e contempladas.

Libertação x Cissexismo  0

Existem dois extremos em relação a como tratar gêneros.

Um deles é o cissexista: só existem dois gêneros, determinados por dois sexos, que supostamente causam também certas escolhas em comportamento e apresentação. Cada um desses gêneros possui uma linguagem associada a tal (o/ele/o para homens e a/ela/a para mulheres).

O outro é supostamente libertador e vanguardista: a ideia de que gênero não existe e não deveria ser levado em consideração, de que pessoas deveriam utilizar qualquer pronome e roupa porque nada dita o gênero de alguém. De que deveríamos ser uma sociedade pós-gênero.

Enquanto esta segunda opção é tentadora para várias pessoas não-binárias, ela também é desrespeitosa com várias pessoas não-cis, e ignora a realidade em que vivemos. Ela também reproduz partes do cissexismo, dependendo de como é tratada.

Bandeira genderqueer

A comunidade genderqueer é formada tanto por pessoas que querem quebrar as normas e o conceito de gênero quanto por pessoas que querem ter sua identidade respeitada, seja qual for.

Caso você queira se identificar como alguém que vai além de gênero – seja como pomogênero, pangênero, sem gênero ou sem rótulos – você pode fazer isso pessoalmente. Caso você queira aceitar qualquer tipo de linguagem e usar qualquer tipo de roupa, você também pode fazer isso.

Porém, você não pode forçar pessoas a agir desta forma, ou fazê-las se sentirem culpadas por perpetuarem estereótipos de gênero, quando estas pessoas também são vítimas do cissexismo.

Uma pessoa gênero-estrela que enfrenta forte disforia social e não aguenta mais escolher entre ser chamada de “ela” ou “ele” não deveria ter que se sentir culpada por buscar um visual ambíguo e insistir em linguagem alternativa.

Uma mulher trans que tem medo de andar na rua e sofrer violência por parecer “homem vestido de mulher” não deveria ser culpada por “perpetuar estereótipos femininos” como se depilar e usar maquiagem e roupas vistas pela sociedade como femininas, para parecer menos com o que a sociedade enxerga como homem e se sentir mais segura.

Uma pessoa transmasculina que tem sua identidade constantemente invalidada por sua família e escola tem o direito de se sentir braba com pessoas que acham que essa pessoa deveria aceitar usar qualquer pronome e qualquer roupa, já que tecnicamente essas coisas não possuem gênero.

Uma pessoa dois-espíritos não deveria ter que encontrar pessoas dizendo que gênero e rótulos relacionados a gênero não importam e deveriam sumir.

Não, você não pode olhar para uma pessoa e decidir sua linguagem, seu gênero, e se essa pessoa é trans ou cis ou não. Mas só agir como se gênero e linguagem não tivesse significado nenhum – especialmente quando isso é direcionado a pessoas não-cis – só isola pessoas que possuem a coragem de explorar e de se identificar com gêneros que a sociedade cissexista e exorsexista diz que não podem. E tem pouco efeito em uma população cis que pode justificar seu gênero de acordo com uma lógica cissexista, sexista e diadista.

Duplo vínculo aplicado a identidades não-binárias  0

Duplo vínculo – muitas vezes conhecido como catch-22 (ardil-22) – é uma expressão que se refere a situações nas quais não existem boas alternativas para quem está envolvide. Neste texto, me refiro ao que acontece com pessoas não-binárias por minha própria experiência, mas vários destes itens também se referem a experiências de pessoas trans em geral.

Em um duplo vínculo, existem duas proposições. Uma pessoa que passa em uma inevitavelmente falha na outra, porém. É um dos jeitos que nossa sociedade cissexista e exorsexista desencoraja pessoas a experimentarem e se identificarem com identidades não-cis. Aqui estão alguns exemplos:

Quem usa roupas de acordo com o próprio gênero acha que gênero é só sobre roupas;
Quem não usa roupas de acordo com o próprio gênero está mentindo sobre seu gênero, já que não o leva a sério o suficiente para investir em um visual correspondente.

Quem utiliza pronomes ele ou ela na verdade é um homem binário ou uma mulher binária, respectivamente;
Quem utiliza outros pronomes está dificultando as coisas desnecessariamente, e só quer ser especial, sem querer levar a própria identidade a sério.

Quem tenta agir como sua identidade de gênero está reforçando estereótipos, e deixando implícito que gêneros são apenas compostos por estereótipos;
Quem não age como um estereótipo não está oferecendo justificativas suficientes para que acreditem em sua identidade de gênero.

Quem não mostra sinais de que sempre foi do gênero que diz ser está deixando de se identificar como cis por modinha/impulso;
Quem mostra sinais de que sempre foi do gênero que diz ser está se forçando a identificar com um certo gênero apenas para encaixar comportamentos passados que na verdade possuem outras justificativas.

Quem tem identidades de gênero que possuem conotação ligada à gêneros binários, como demimulher e homem agênero, na verdade é de tais gêneros binários;
Quem tem identidades de gênero que não são ligadas a gêneros binários, como eafluide ou maverique, não entende o que é gênero de verdade, ou está só inventando moda.

Quem usa um rótulo genérico, como não-binárie, não sabe do que está falando e só diz isso por não entender de gênero;
Quem usa uma identidade mais específica, como magineutrois nanoandrógine, está querendo ser especial, ou está tentando se esforçar demais em relação a “achar caixinhas” para sua identidade de gênero.

Pessoas que querem ir atrás de hormônios, terapias e cirurgias para se sentirem mais à vontade com seu corpo na verdade são pessoas trans binárias;
Pessoas que não querem ir atrás de hormônios, terapias e cirurgias por acharem que não é necessário, ou porque acham que as opções disponíveis não são adequadas para seu gênero, não são pessoas trans de verdade, porque não querem tomar riscos com seu corpo.

Pessoas que descobrem sua identidade quando mais novas estão muito novas para saber o que estão dizendo;
Pessoas que descobrem sua identidade quando mais velhas estão mentindo, porque passaram muito tempo sem se identificar de certo modo.

Certas pessoas não-binárias são tratadas como “basicamente pessoas trans binárias”, enquanto outras são tratadas como “basicamente pessoas cis”.

É importante ressaltar que pessoas não-binárias podem ser de qualquer idade, raça, gênero designado ou neurotipo, dentre outras características. Uma pessoa pode ter seu gênero influenciado por características como ser autista, otherkin, intersexo, ou sobrevivente de trauma, porque estas experiências e percepções podem influenciar uma identidade de gênero de forma única, de modo que a identidade de gênero da pessoa não pode ser separada de suas outras identidades e experiências.

Além disso, ninguém precisa ser cis para ser GNC (gender non-conforming; alguém cuja expressão de gênero não é típica para seu gênero). Uma pessoa que é andrógine pode preferir se apresentar de forma feminina, e ume demimulher pode preferir se apresentar de forma masculina. Isso não anula os próprios gêneros destas pessoas. Ser uma pessoa com interesses e expressões mais femininas ou mais masculinas não anula o gênero com o qual uma pessoa se identifica, mesmo que este seja não-binário.

(Obviamente, ume demimulher pode considerar que seus visuais mais masculinos na verdade são a forma pela qual elu expressa seu gênero, e ume andrógine pode expressar seu gênero por meio de vestidos e maquiagem. Isso varia entre pessoas não-binárias, mesmo entre as pessoas de um mesmo gênero.)

Cada pessoa tem seus motivos para dizer ser de uma certa identidade, e não é o papel de alguém de fora, que nem tem como saber de tudo pelo que a pessoa passou, dizer que a identidade de alguém está incorreta (a não ser que seja intrinsecamente problemática, como uma pessoa dizer que é de algum gênero não pertencente à suas experiências de vida). E ninguém deve ter que justificar o quanto sua identidade de gênero é válida, tendo que contar sobre momentos privados da infância, pensamentos particulares da adolescência, e desejos para o futuro. Muito menos se ainda vai ter um julgamento para dizer que tais experiências e desejos não são o suficiente.

Se qualquer tipo de experiência não-binária é um incômodo e não parece certa, não são as pessoas não-binárias que estão erradas. Pessoas que estão seguras sobre a própria identidade com certeza possuem mais experiência do que alguém que sente insegurança em relação à existência de algo novo.

Mitos e verdades sobre pessoas não-binárias  9

Mitos e verdades é uma série de posts que vão direto ao ponto sobre opiniões preconceituosas ou errôneas de alguma outra forma.

Mito: Pessoas não-binárias não devem ser consideradas transgênero
Verdade: Algumas pessoas não-binárias não acham que transgênero é uma palavra adequada para suas experiências, mas várias pessoas não-binárias se identificam como pessoas trans.

Mito: Pessoas não-binárias utilizam o pronome elx
Verdade: Enquanto pessoas não-binárias podem utilizar o pronome elx, pessoas não-binárias também podem utilizar ile, elu, eld, entre outros, ou até mesmo ele ou ela, ou ainda, podem não se importar com qual pronome é utilizado. Depende da preferência de cada pessoa.

Mito: Linguagem neutra envolve terminar tudo com x ou com y
Verdade: Linguagem verdadeiramente neutra em relação a pessoas deve fazer com que todas as pessoas sejam inclusas, sejam pessoas não-binárias, homens ou mulheres. Não adianta dizer “todxs somos lutadores”, porque lutadores está na linguagem considerada masculina, o que anula a neutralidade da frase. “Todxs xs organizações” também é desnecessário, porque organizações é uma palavra que pede a/ela/a.
Também é preferencial utlilizar termos neutros mais pronunciáveis, como aquelus ou todes, ao invés de aquelxs ou todxs.

Mito: Pessoas não-binárias estão inventando gêneros para parecerem especiais
Verdade: Pessoas não-binárias muitas vezes precisam criar novas palavras para se descreverem, porque as existentes não são suficientes. Pessoas não-binárias muitas vezes não dizem que são não-binárias, ou não especificam seus gêneros, por causa de todo o preconceito e da possibilidade de isolamento e violência que envolve ser uma pessoa transgênero ou não-binária. Ser não-binárie não é uma fonte de popularidade ou de respeito, muito pelo contrário; não há porque adotar uma identidade não-binária por “modinha”.

Mito: Pessoas não-binárias só ligam para roupas, não sentem disforia e nem fazem nenhum tipo de transição que seja permanente
Verdade: Algumas pessoas não-binárias não possuem interesse em transição, porque a tecnologia atual não é o suficiente, por causa de problemas de saúde, por causa de problemas financeiros, e/ou por causa de falta de apoio de pessoas próximas, entre outros motivos. Porém, várias pessoas não-binárias sofrem disforia, e muitas fazem transição, tomando hormônios, fazendo cirurgia para remover peitos ou ter uma face considerada mais feminina, entre outras coisas.

Mito: Gêneros não-binários foram uma invenção recente
Verdade: Várias palavras que descrevem gêneros não-binários são datadas da década de 90 (por exemplo: gênero-fluido, neutrois), e algumas pessoas já se descreviam como andrógines no fim do século XIX e no início do século XX. O título neutro Mx, que poderia ser traduzido como Sre. (senhore) em português, foi utilizado em via impressa pela primeira vez em 1977. Também é uma boa ideia lembrar de que a ideia de só haverem dois gêneros não é universal; certas culturas não dividiam dois gêneros desta forma, e outras possuem ou possuíam de 3 a 6 gêneros. Pessoas de tais culturas que possuem gêneros incompatíveis com o binário homem/mulher de atualmente certamente não são cis, mas possuem o direito de escolher se querem ou não se rotular como pessoas transgênero e/ou não-binárias.

Mito: A palavra cisgênero nasceu em redes sociais
Verdade: A palavra cisgênero foi inventada em 1995 por um homem trans.

Mito: Pronomes neutros foram inventados em redes sociais
Verdade: Talvez isso até seja verdade em português, mas ao menos em inglês, existem neopronomes neutros (ou seja, que não são they ou it) datados de 1789 (ou), 1858 (thon), 1884 (ip, le), 1888 (ir), 1890 (e), 1970 (co), 1975 (ey), 1977 (em), 1979 (et) e 1982 (hu), entre outros.

Mito: Pessoas não-binárias são só adolescentes que ficam na internet o dia todo e que não sabem como o mundo real funciona
Verdade: Pessoas não-binárias podem ter diversas idades, e embora muitas utilizem a internet como principal meio de interação e expressão, parte disso é causado pela repressão que identidades incomuns sofrem no mundo real. Cissexismo e exorsexismo são algo real, e é por isso que muita gente só tem coragem de dizer que é não-binárie em redes sociais.

Mito: Pessoas intersexo são biologicamente não-binárias
Verdade: Enquanto pessoas intersexo são intersexo por não se encaixarem em categorias biológicas de “sexo masculino” ou de “sexo feminino”, são raros os casos onde uma pessoa intersexo não é categorizada como um gênero binário ao nascimento. Uma mulher intersexo que foi designada como menina ao nascimento não é trans; uma pessoa não-binária que é intersexo não é cis. Tentar relacionar possibilidades de características sexuais primárias e secundárias com gêneros não-binários também é cissexista e diadista.

Fonte das questões históricas: http://nonbinary.org/wiki/History_of_nonbinary_gender