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“E se eu for intersexo?”  0

Bandeira Intersexo

Imagem: Uma bandeira intersexo composta de 5 faixas verticais do mesmo tamanho, nas cores roxa, amarela, branca, amarela e roxa, com três formas parecidas com corações uma por cima da outra no centro da bandeira, sendo a mais de trás (que está mais para cima) azul, a do meio roxa e a da frente/de baixo rosa.

 

Esta é uma pergunta que eu já tive, e uma pergunta que já vi muitas outras pessoas tendo. Como não existem muitos recursos direcionados a isso, eu gostaria de dar minhes opiniões e palpites.

Aviso de conteúdo: Este é um texto direcionado a pessoas que estão questionando ser intersexo, e portanto falo sobre formas que pessoas já descobriram ser intersexo. Isso inclui “tratamentos corretivos” na infância e descrições de características sexuais.

 

 

Por que você quer saber que é intersexo?

Embora isso não faça diferença em relação a alguém ser ou não intersexo, descobrir a própria intersexualidade pode custar dinheiro e tempo, além de poder ser estressante. Procurar ser intersexo por validação externa pode acabar não valendo a pena, especialmente se o fim dessa jornada pode acabar resultando em indeterminação ou em determinação de uma corporalidade perissexo.

Ninguém precisa ser intersexo para:

  • Interagir/conviver com pessoas intersexo;
  • Justificar uma desconexão com o gênero designado ao nascimento;
  • Ser uma pessoa trans;
  • Ser uma pessoa não-binária;
  • Ir a eventos intersexo abertos a públicos gerais;
  • Ajudar coletivos, organizações e outros grupos intersexo.

Sei que muitas pessoas buscam ser intersexo para conseguirem justificar serem trans e/ou não-binárias, então vou reforçar aqui: corporalidade não justifica gênero. Ser intersexo não prova que alguém é não-binárie. Existem pessoas que são do gênero designado ao nascimento, que são de algum gênero binário que não foram designadas ao nascimento e pessoas não-binárias tanto entre pessoas intersexo quanto entre pessoas perissexo. Você não precisa justificar sua identidade de gênero com intersexualidade, e é até provável que isso não funcione.

A maioria das variações intersexo não são vistas como tal pela comunidade médica, já que intersexo é um rótulo social. Tentativas de justificar alguma identidade cisdissidente com corporalidade intersexo vão ser furadas por “não, você é [gênero designado], só tem um probleminha que pode ser resolvido”. É até possível que pensem que ser intersexo faz parte de sua “confusão acerca da identidade de gênero”.

Além do mais, experiências intersexo são variadas (tanto pelas diferentes variações intersexo quanto pelas diferentes situações que alguém pode ter passado dentro de certa variação) e não garantem sabedoria automática em relação a questões intersexo. Fazer um teste de cromossomos aos 30 anos e se descobrir intersexo por ser XYY não dá a alguém a experiência de uma pessoa que passou por cirurgias e/ou terapia hormonal por conta de sua intersexualidade.

Ser intersexo geralmente não significa ter crescido em um ambiente onde a maioria das pessoas em volta possuem a mesma marginalização (da mesma forma que, por exemplo, ser pobre), ou que a pessoa precisou questionar ao menos algumas normas sociais para conseguir entender o que é (da mesma forma que, por exemplo, ser não-binárie). Então pode ser comum achar pessoas que sabem que possuem tal variação intersexo, mas que só se veem como doentes porque é isso o que disseram a elas pela vida inteira, e que acham absurdo serem classificadas como fora de “seu sexo biológico” ou como LGBTQIAPN+ por conta de tal “doença”.

Por conta disso, por mais que variações intersexo sejam comuns, nem toda pessoa intersexo vai ser uma aliada na luta contra o diadismo, ou na luta contra cissexismo e heterossexismo. E nem toda pessoa intersexo vai se reconhecer como tal. Novamente, ser intersexo não garante entendimento nenhum sobre questões intersexo ou LGBTQIAPN+, e querer se dizer intersexo só para poder entrar em mais discussões acerca do assunto pode não ser uma boa ideia.

 

 

As várias jornadas possíveis

Existem dezenas de variações intersexo, então obviamente elas podem acabar sendo descobertas de formas diferentes.

Algumas pessoas decidem pesquisar sobre alguma medicação estranha que tomaram na adolescência e descobrem que era terapia hormonal. Outras pessoas descobrem em seu histórico médico que passaram por várias cirurgias sem ter idade suficiente para ter memórias disso, e, perguntando para responsáveis e/ou hospitais, descobrem que a cirurgia foi para remover gônadas consideradas inadequadas e/ou para “corrigir” a genitália.

Algumas pessoas fazem exames hormonais por qualquer motivo e descobrem que seus níveis hormonais são diferentes dos esperados. Ou fazem exames de cromossomos que retornam resultados diferentes dos esperados. Ou tentam fazer exames de útero e descobrem que sua genitália é atípica, que suas gônadas funcionam de forma diferente ou que na verdade não possuem útero.

Algumas pessoas passam por mudanças inesperadas na adolescência, como algum crescimento de seios ainda que a pessoa tenha sido designada homem ao nascer, ou como crescimento de barba ainda que a pessoa tenha sido designada mulher ao nascer. Também pode acontecer que a pessoa não passe por nenhum tipo de mudança esperada, por não produzir ou ser afetada por estrogênio e/ou testosterona.

Algumas pessoas acabam se deparando com a informação de que seus falos são maiores do que o esperado (clitoromegalia), ou menores do que o esperado (micropênis, afalia).

Com mais informação sendo difundida sobre questões intersexo, agora é possível que pessoas pesquisem sobre o assunto mesmo que não hajam sinais “óbvios” de ser intersexo. Embora eu ache que este seja um questionamento saudável – afinal, parte do diadismo é a questão de pessoas não questionarem que mais de dois sexos serem possíveis – não é sempre uma questão fácil de responder.

 

 

Se você não tem certeza, pergunte-se…

  • Você já sentiu que seu corpo teve um desenvolvimento de características sexuais diferentes das esperadas, ainda que ele não possa ser justificado por conta de acidentes, cirurgias ou terapia hormonal (incluindo bloqueadores de hormônios)?
  • Você passa, passou ou tem motivo para achar que passa/passou por terapia hormonal ou cirurgias relacionadas com características sexuais sem o seu consentimento?
  • Você passa ou passou por algum problema que poderia ser justificado pelos seus níveis de hormônios sexuais serem atípicos naturalmente (incluindo: quantidade/grossura de pelos no corpo, ciclos menstruais irregulares, problemas onde uma consulta médica resultou em medicação que afeta hormônios sexuais)?

Se você acha que a resposta é sim, você pode sair procurando por variações intersexo que possam justificar isso. Ou não; é possível que nenhuma pareça se encaixar ainda que suas experiências sejam reconhecidas como intersexo pela maioria. Você pode querer fazer exames para ter certeza se possui uma variação intersexo específica, como síndrome do ovário policístico ou hipogonadismo, mesmo que os resultados só digam essas coisas sem conter a palavra intersexo. Ou, se o caso é que você suspeita de modificações corporais, você pode ir atrás de seu histórico médico.

É possível que as suspeitas não confirmem nada. Afinal, sempre vai existir um limite entre onde ser perissexo termina e onde ser intersexo começa; será que é um micropênis ou um pênis? Quantos pelos grossos precisam aparecer pra contarem como ter barba? Nestes casos, acho bom se perguntar: faz sentido chamar as experiências relacionadas a isso de experiências intersexo? Este é um rótulo útil para elas?

Se nada disso parecer familiar, ainda é possível que você seja intersexo. Afinal, você só tem a própria experiência e pode não vê-la como diferente das demais, ou você pode ter uma variação intersexo que passou despercebida (como alguma que é puramente relacionada a cromossomos). Porém, também é possível que você não seja intersexo.

Você pode fazer exames para conferir níveis hormonais e cromossomos, mas, a não ser que haja um desejo muito grande de ter certeza, eu não vejo muitos motivos pra fazer isso. Exames são caros e demorados; qual a vantagem em querer tanto provar ser intersexo, sem nem ter tal certeza?

Observação: É em inglês, mas o site da ISNA tem várias informações sobre variações intersexo aqui. O máximo que chega perto disso em português, até onde sei, são páginas da Wikipédia sobre o assunto. Vale lembrar que nenhuma destas páginas contém uma lista completa de variações intersexo.

 

 

Umas últimas informações

Independentemente de você ser intersexo, tente ler sobre questões intersexo. Tem a página do Facebook da ABRAI, umas postagens sobre intersexualidade em Transadvocate Brazil e diversos blogs, vlogs e perfis de pessoas intersexo por aí.

A comunidade intersexo é muitas vezes dividida em uma série de questões: se tal variação conta ou não conta como intersexo, se tal bandeira representa bem a comunidade ou é ofensiva, se pessoas que não são intersexo devem ser chamadas de perissexo, endossexo ou diádicas, se a palavra intersexual é ofensiva ou não. Recomendo prestar atenção nas divergências e não tentar corrigir pessoas intersexo que discordam de você ou de sue blogueire intersexo preferide, especialmente se a pessoa não parecer aberta a mudar de ideia.

Mesmo assim, a maior parte da comunidade – ao menos de suas partes mais alinhadas com ativismo intersexo – concorda que cirurgias em bebês e crianças pequenas precisam acabar, assim como terapia hormonal sem consentimento. A maioria entre essas pessoas também vai ser contra a designação de gênero/sexo ao nascimento de qualquer pessoa, mas especialmente contra a designação coerciva de pessoas intersexo.

Se você for (ou se descobrir) intersexo e quiser se envolver mais na comunidade, fale com pessoas intersexo que você conhece, contate a ABRAI (que possui Instagram também) ou tente postar sobre isso em nosso fórum em alguma área apropriada.

26 de outubro: Dia da Visibilidade Intersexo  0

Uma das bandeiras intersexo, criada pela OII

Esta é uma das poucas datas dedicadas a pessoas intersexo. Nenhuma identidade LGBTQIAPN+ possui muitas datas por si só, mas levando em consideração a invisibilidade de questões intersexo dentro de espaços LGBTQIAPN+, parece que é pouco.

Caso você não saiba o que significa intersexo, você pode ver a página sobre isso aqui. Caso esteja sem tempo, pessoas intersexo são pessoas que, por motivos congênitos – ou seja, naturais, e não induzidos por acidentes, terapia hormonal ou cirurgias – não se encaixam nos padrões diadistas de “sexo feminino” ou “sexo masculino”. Isso pode ser devido a uma série de fatores, afinal existem dezenas de variações corporais relacionadas a sexo conhecidas.

Poucos países possuem o direito à autodefinição de gênero ou à autonomia corporal de pessoas intersexo. De fato, apenas Malta, um pequeno país europeu, atualmente garante integridade física, autonomia corporal, reparações, proteções anti-discriminação, acesso a documentos de identificação, acesso aos mesmos direitos de pessoas perissexo/diádicas (não-intersexo) cisgênero, direito a mudar seus documentos entre masculino e feminino e acesso a uma classificação X nos documentos caso não se sintam confortáveis com categorias binárias. (Fontes: 1, 2)

Ou seja, na maior parte dos países, pessoas intersexo não possuem acesso a classificações além de “masculina” ou “feminina” em seus documentos. Tais classificações não podem ser autodeterminadas. Pessoas intersexo menores de idade não possuem proteções contra terapias hormonais e cirurgias de mutilação genital forçadas e/ou erroneamente recomendadas por pessoas da área médica que acreditam que ser intersexo é “doença” ou “malformação” a ser “curada”. Não possuem nenhuma proteção contra discriminação por serem intersexo. Também não possuem nenhum direito a reparações pelo sofrimento que essas condições de vida podem causar. E, ainda assim, muitos grupos que lutam por direitos humanos nem mencionam questões intersexo.

A partir da introdução e da fortificação do binário de sexo e gênero, pessoas intersexo tornaram-se marginalizadas por seus corpos supostamente “não alinharem” com seus gêneros, assim como outras pessoas não-cis (outras porque pessoas intersexo não possuem privilégio cis), e assim como pessoas não-hétero são excluídas pelos seus gêneros/corpos “não alinharem” com as expectativas sobre suas atrações. Por isso, pessoas intersexo fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+, ainda que existam pessoas intersexo que não se sentem seguras ou que não fazem questão de participar de espaços para a comunidade, assim como existem pessoas gays, bi, assexuais, não-binárias, etc. que fazem o mesmo.

Algumas organizações atualmente incluem pessoas intersexo em suas versões da sigla (LGBTI, LGBTIQ, LGBTQIA, etc.), mas muitas tentam passar a ideia de que questões intersexo são totalmente diferentes de “questões LGBT” (como se as identidades cobertas por essas quatro letras não tivessem demandas diferentes entre si), que pessoas intersexo “cis e hétero” estão “se forçando na comunidade”, ou que pessoas de alguma outra identidade “controversa” (queer, assexual, arromântica, não-binária, etc.) estão “forçando pessoas intersexo na comunidade” para “confundir as pessoas e arranjar desculpas para invadir a comunidade”. Essas versões da história ou do propósito da comunidade são desrespeitosas tanto a pessoas intersexo quanto a outras pessoas que não são visivelmente parte da sigla que foi definida como “tradicional” ou “consagrada”.

Como comunidade e como pessoas, devemos aceitar, respeitar e incluir pessoas intersexo, não só por suas demandas serem parecidas com outras partes da comunidade, mas também por serem um grupo marginalizado pela sociedade dicissexista por si só.

Procurem se informar, especialmente pelo dia de hoje ter gerado diversas postagens sobre questões intersexo.

Intersex Day (inglês/espanhol) (+ Facebook)

Visibilidade Intersexo (+ Tumblr)

Intersexo e Dignidade

Coletivo Intersexo RS (sem postagens informativas no momento, precisa de gente)

#VisibilidadeIntersexo no Twitter

#VisibilidadeIntersexo no Instagram

#Intersexo no Instagram

Por uma normalização da linguagem LGBTQIAP+  0

Aviso de conteúdo: Menção de violência transmisógina e de assuntos que podem evocar disforia. Intersexofobia, transfobia e ignorância em relação a identidades incomuns no geral.

Há um trabalho sério de educação a ser feito em volta da linguagem que utilizamos no dia-a-dia. Enquanto algumas pessoas – não qualquer pessoa, mas pessoas em grupos ativistas ou em universidades – já incorporam, de certa forma, a possibilidade de alguém ter um relacionamento com alguém do mesmo gênero, é bem mais raro haver a inclusão de outras identidades na linguagem do dia-a-dia.

Muites utilizam o x em redes sociais para simbolizar neutralidade, em frases como “todxs contra a violência”, mas, ao falar na vida real, utilizam “todos e todas”, como se estivessem sendo completamente inclusives por incluírem “ambos os gêneros”.

Muitas mulheres comentam que suas vidas seriam melhores se tivessem nascido com pênis, como se não houvesse uma enorme quantidade de assassinatos de mulheres trans e de outras pessoas de identidades transfemininas, por estas serem mulheres ou pessoas confundidas com mulheres que nasceram com pênis.

Muitas pessoas tratam de gravidez, de aborto e de menstruação como se fossem exclusivos de mulheres, ou deixam implícito que toda mulher conhece estas coisas, o que exclui diversas pessoas trans e intersexo.

Pessoas não-binárias não podem se apresentar e dizer seus pronomes e ter gente entendendo o que está acontecendo. E, se entendem, vão quase sempre enfrentar comentários sobre o quanto é difícil se referir a alguém com pronomes que não lhes vem à mente para a pessoa.

Pessoas de qualquer identidade mais incomum, não importa o quanto refletiram sobre serem de certa identidade, vão encontrar pessoas perguntando se possuem certeza, e se isso não é só uma vontade de querer ser especial ou de querer se encaixar, se contarem sobre sua identidade para outras pessoas.

Deveríamos ter grupos LGBTQIAP+ lutando por mais visibilidade, de formas concretas como panfletos e workshops. Isso é uma questão muito mais simples do que pautas vagas de acabar com a homofobia/transfobia, e muito mais efetiva do que declarações de repúdio ao bullying. Estas são coisas importantes também, mas não devem ser as únicas pautas que mobilizam a comunidade.