Queerspectivas 1: Roda de conversa trans e asiática
Link para assistir no Nextcloud (ou baixar)
Avisos de conteúdo:
- Racismo, transmisia e imposição de papeis de gênero, inclusive dentro de famílias e religiões;
- Associação de características corporais e conjuntos de linguagem com feminilidade e masculinidade;
- Linguagem mascunormativa (o/ele/o como conjunto de linguagem usado para grupos com conjuntos de linguagem mistos).
A transcrição abaixo foi realizada por Travest’Yvies, com edições posteriores feitas por Aster.
Isabela: Só pra explicar aqui o que a gente vai fazer, a gente vai fazer uma roda de conversa… é, uma mistura de painel e roda de conversa em que a gente vai conversar sobre as nossas experiências como pessoas trans e asiáticas. A ideia é compartilhar experiências e poder responder perguntas que surgirem ou se alguém quiser entrar na nossa meeting, tem um link aí em cima da tela. Está aberto, assim, para quem quiser entrar. Acho que a ideia é, pelo menos, priorizar as experiências de pessoas trans asiáticas. E tipo, a gente tá chamando essa série de painéis, talvez, ou de conversas de Queerspectivas, queer + perspectivas. É uma série de transmissões com o objetivo de falar sobre assuntos queer, NHINCQ+, ou LGBTQIAPN+, sem ter que ficar repetindo conceitos básicos. E caso alguém tenha dúvidas sobre algum termo mencionado aqui, podem procurar a definição dos termos da página do site orientando.org, ou podem fazer pergunta aí direto no chat.
Isabela: Aí, tipo, conjuntos pessoais não são muito óbvios, então a gente vai começar agora a se apresentar, falar qual é o conjunto pessoal. E é isso, a gente pode começar se apresentando. Eu posso começar. Meu nome é Isabela, eu uso o nick como QueerNeko, eu uso o conjunto a/ela/a e eu trabalho como engenheira de software. É… tenho… 28 anos [risos]. Já tá difícil contar. Acho que já faz uns… 4 anos que eu me abri como trans. Eu tenho descendência japonesa. E acho que é isso. Agora, se vocês quiserem se apresentar agora.
Julia: Bom, meu nome é Julia. Eu só não gosto de conjuntos, pronomes masculinos. O resto é, tipo, tanto faz. Ahn, eu tenho 32. Eu não sei mais quanto tempo eu iniciei a transição, mas faz mais de 5 anos. Ahn… o que mais? Eu também sou engenheira de software. E eu sou judia mizrahi, que são [referindo-se ao grupo] os judeus da parte oeste asiática, em especial.
Diego: Meu nome é Diego, tenho 26 anos, tenho ascendência coreana e meus pronomes são masculinos.
Isabela: Legal. Então, é… Acho que a gente pode começar, tipo… meio que tentar falar sobre… Eu não sei direito por onde começar. Mas, tipo, eu posso começar, pode ser?
Julia: Pode, pode.
Isabela: Bom, pelo menos, tipo… da minha experiência, a minha família… Bom, acho que veio para o Brasil antes da segunda guerra, eu diria. Eu não consigo lembrar exatamente quando, mas tipo… Teve uma forte migração japonesa nessa época, meio que o Japão tentava se livrar das pessoas pobres [risos nervosos] mandando pra outros países. E daí… bom… meus avós vieram pra cá, pra meio que tentar começar uma vida nova. E tipo… então acho que eu já tô aqui faz umas quatro gerações. Três ou quatro. É, três ou quatro. Depende de qual avô ou qual avó. E, tipo… o que eu vejo da comunidade japonesa é que ela, a que está no Brasil, foi bastante cooptada pelo cristianismo, principalmente o cristianismo evangélico. Então tipo, tem uma percepção muito forte de gênero, assim, tipo, de reforçar estereótipos de gênero, tipo, “ah, tem que ter um pai de família que tem que prover”, assim, a mulher tem que trabalhar… tem que servir de dona de casa, por exemplo.
Isabela: E daí… é, tem meio que isso e, tipo, ao mesmo tempo que eu acho que a sociedade meio que vê pessoas do leste asiático, assim, meio que de forma meio… veem homens de forma meio afeminada, assim, tem essa questão de orientalismo, de ver mulheres do leste asiático como submissas e homens como menos masculinos. Então, meio que minha experiência tá misturada com todo esse tipo de racismo. Daí, tipo… eu já vi pessoas meio que falando que pessoas japonesas são… qual o termo que usou? Meio… “andróginas”, eu acho. E, ao mesmo tempo, meu pai, ainda mais que ele trabalha mais na área rural, do tipo fazenda, granja, e eu não tenho uma boa experiência com ele. Tipo, ele… odeia bastante que eu sou trans. Queria forçar muito assim o estereótipo de homem, assim, tipo, queria me forçar a entrar na escola do exército, por exemplo. Bom, eu não entrei, eu escapei, ainda bem!
Julia: Que bom, né?
Isabela: É, que bom. E… não sei, eu acho… que é isso, assim… Eu não sei muito o que eu posso dizer.
Julia: Eu acho que a experiência do Diego é bem parecida, então…
Isabela: Ah é?
Julia: É. A minha é bem diferente da de vocês.
Diego: No meu caso, meu pai veio para o Brasil com os pais dele quando ele tinha mais ou menos uns 13 anos. Então ele já é um pouco mais abrasileirado, mas mais no sentido de tipo, ter um bom português e saber lidar bem com as pessoas daqui. Por outro lado, a minha mãe veio pra cá quando ela tinha uns 30 anos. Ela basicamente veio pra cá e se casou. Então dá pra dizer que ela não… tá, ela vive de boa aqui, mas a relação dela com as pessoas daqui ainda é meio complicado. Ela não fala tão bem português quanto o meu pai, então é meio… é meio complicado ainda, porque eu também sou a primeira geração que nasceu aqui. Então tem todo o peso de, sei lá, por exemplo, ser a primeira pessoa a entrar na faculdade na família, etc., etc. Eu e os meus primos que vieram antes de mim. Então acho que tem muito esse peso. E vivendo aqui, nascendo e vivendo aqui em Porto Alegre, também tem a situação de que quase não tem pessoas asiáticas, de modo geral, tanto amarelos quanto marrons. Então era a situação de sempre, tipo, “ah, você é a única pessoa asiática em qualquer lugar que eu vou”, e é uma situação meio chata, porque no fim tu acaba sendo lembrado só como uma pessoa asiática e não como, sei lá, tu como pessoa.
Diego: Mas aqui também, pelo menos entre os coreanos, tem muito a questão religiosa. Então, tem a divisão entre os coreanos católicos e os evangélicos. Então, por mais que a religião fosse mais um fator pra reunir as pessoas e ter um motivo pra elas reunirem todo mês, etc., acho que acaba tendo essas pressões que a religião traz do lado conservador, mas eu acho que o fato da maior parte dos coreanos também terem vindo mais tarde pra cá, pelo menos os de Porto Alegre, faz com que eles mantenham o conservadorismo da época em que eles saíram do país de origem deles. Então isso é meio complicado. Mas na minha situação, por exemplo, eu nunca falei nada pros meus pais e eles nunca perguntaram nada. Então, tipo, é aquele negócio de eles não perguntam, eu não falo nada, eu não pergunto nada, eles também não falam nada. Então é tipo, eu vivo com eles, moro com eles, trabalho com eles, mas… é como se fosse algo totalmente ignorado, mas não sei se é ignorado propositalmente ou ignorado por parte, sei lá, deles não acharem que é possível uma coisa dessas acontecer na família deles [risos]. Então…
Isabela: Acho que é bem isso também na minha família. Tipo, meus pais sabem. Acho que as únicas pessoas da minha família que não sabem são meus avôs, avô materno e paterno, que, não sei, tentam esconder ao máximo que eu existo e acho que basicamente acham que se descobrirem, vão, sei lá, morrer do coração?
Julia: Bom, eu vou falar então. Tenho um adendo pra fazer. Os judeus mizrahis, por definição, é um termo orientalista porque “mizrahi” significa oriental. Então, na verdade, é um conjunto de diferentes etnias que os judeus – acho que nazistas denominaram como judeus orientais – mas é mais fácil explicar. Minha família vem de vários destes conjuntos, em especial o conjunto turco, não turco da Turquia, mas turco, que é bem intolerante e tem uma visão de gênero bastante diferente. Então, por exemplo, os meus dois bisavós tiveram filhas, irmãs e sobrinhas lésbicas. Isso já no início do século passado. Era bem mais tolerante já. Na geração da minha mãe e da minha avó também tem outras pessoas. Então essa questão queer nunca foi um grande problema nesse sentido, tá? Passar de homossexualidade e bissexualidade pra transgeneridade foi um grande passo pra minha família. Mas, ainda assim, foi muito mais fácil de digerir. Além disso, como as práticas religiosas da minha família sofreram impacto com as práticas religiosas dos judeus daqui, a minha família perdeu um pouco as suas práticas religiosas e a religião deixou de ser uma coisa muito importante na família. Isso fez também com que essas coisas se diluíssem um pouco mais. Só a minha bisavó, que era da Turquia, realmente manteve um pouco além. Mas ela também era uma pessoa super tolerante. Quanto a… Perdi o que eu ia falar [riso].
Julia: Mas aí assim, da questão trans em especial, não era uma coisa que as pessoas sabiam que podia acontecer. Era uma coisa “isso não existe”. Era aquela coisa tipo, sei lá, existem travestis, sim, elas aparecem de noite e somem de dia, do nada, ninguém nunca viu. Então, as pessoas não faziam conexão de como pessoas se tornavam trans. E isso foi um processo bem longo desde os meus 14 anos, de ir e vir com a minha família. Falar várias vezes que isso era uma realidade, que ia acontecer. Até o momento de, tipo, tá, isso vai acontecer. E quando isso aconteceu, de fato, minha mãe não ficou do meu lado, mas ela não foi hostil totalmente, assim. Ela tentou ao máximo aceitar. O meu pai foi bem mais complicado, mas acho que ele não é relevante pra essa história. E… E acabou que, com a minha mãe aceitando bem, o resto da família fez um esforço também pra aceitar. E tem muito essa coisa de o que não é… Se não é no meu núcleo familiar, importa pouco. Foi bem relevante, assim. Então, tipo, como eu sou a filha única da minha mãe, não era uma possibilidade pra minha mãe perder a sua única filha. Então, isso também ajudou um monte. E o resto da minha família foi tipo, “tá, não é minha filha direta, então não tem que me preocupar”.
Julia: Tem outro ponto importante também, que é ter um pouco mais de valorização da mulher em relação ao cristianismo, em especial. Então, o judaísmo em si é uma religião matriarcal, apesar dos… dos… ashkenazi em geral venderem uma questão mais patriarcal, mas a minha avó e as outras mulheres da família dificilmente tiveram a opção de serem donas de casa. Então, os pais estavam lá dizendo, “não, vocês têm que estudar; vocês têm que ter uma opção se o marido de vocês morrer” ou qualquer coisa do gênero. Então, elas sempre ajudaram, sempre estiveram junto nas decisões de negócio, pois os judeus são majoritariamente comerciantes. Então, isso foi uma grande sustentação. Essa questão queer já existia na família, e a questão de gênero, que é aquela… Acho que ninguém tolera muito bem quando você está disposto a perder os seus privilégios. Então, acho que é muito difícil isso. E como tinha menos essa diferença de gênero, acho que isso foi uma coisa menos relevante também. E é interessante porque é uma visão, uma situação bastante diferente da de vocês, assim. Vocês têm alguma coisa pra falar? Perguntar?
Isabela: Sim, sim. É, eu… eu fico pensando, assim, que, tipo, a questão de imigrantes japoneses no Brasil, eu acho que é até um pouco paradoxal, assim, a questão de como as pessoas geralmente veem pessoas asiáticas ou pessoas japonesas, tipo, as pessoas olham, sei lá, os animês ou mangás e acham que tipo o japão é mais livre assim talvez sexualmente, não sei dizer, ou pelo menos que é mais… afeminado, talvez? Que homens não precisam… Eu não sei explicar muito bem, mas enquanto que no Brasil, imigrantes japoneses meio que acabam até reforçando mais o patriarcado e esses estereótipos de gêneros, mais do que as próprias pessoas japonesas, por exemplo. Acho que a comunidade japonesa aqui do Brasil, muita gente se converteu para o cristianismo. Minha família… se converteu assim, tipo, minha avó pegou as coisas, tipo, pegou, sabe aquela casinha lá que você reza para as pessoas que morreram?
Julia: Mmhmm.
Isabela: E jogaram fora.
Julia: Sério?
Isabela: É, pegaram os quadros que tinham e jogaram fora. A minha avó fazia culto budista dentro da casa e agora não fazem mais! Tudo porque, sei lá, é… paganismo, de acordo com o cristianismo. E, inclusive, eu acho bastante triste essa questão de terem jogado basicamente boa parte da história.
Julia: Fora que, eu não sei como é o budismo japonês, mas eu sei que o budismo indiano, o nepalês e a Tailândia em especial, são bem tolerantes em relação à questão trans. No budismo sul-asiático estão definidos quatro gêneros. Não vou entrar em detalhes sobre eles, mas tipo, o próprio budismo já traz a existência de quatro gêneros diferentes. Acho que isso é uma diferença bem importante nessa conversão. Não que a situação das pessoas trans no sul-asiático seja muito boa, mas acho que a tolerância social é um pouco maior, assim. Então… é uma grande perda.
Isabela: É, e tipo… Acho que, tipo… a minha impressão, pelo menos, é que imigrantes japoneses que vieram pra cá acabam sendo mais conservadores que talvez se a gente tivesse no Japão, por exemplo.
Julia: Acho que isso é um ponto. Eu morei na Coreia por seis meses pelo Ciências sem Fronteiras. E lá eu levantei o tema de pessoas trans. Tem uma atriz famosa na Coreia e cantora, a Haris. E tipo, todo mundo conhecia, todo mundo era mais ou menos de boas com ela e tal. E aí, que nem o Diego falou, aqui no Brasil a comunidade coreana é bem mais conservadora, assim. Eu acho que é um paralelo bem forte com isso que tu falou. Lá as pessoas são mais ok com isso.
Isabela: Sim, sim.
Julia, para Diego: Tem alguma coisa pra falar?
Diego: Ahn, é eu acho que é bem isso mesmo. A época que tu sai mais ou menos do teu país de origem. Faço o quê? Tipo, meu pai, ele saiu de lá com 10 anos. E ele tem as memórias de uma Coreia de quando ele tinha 10 anos, pós-guerra e etc. Já minha mãe já viu o crescimento do país, etc. E as pessoas… começando até a mentalidade um pouco mais aberta. E aí eu vejo que tem muita diferença cultural entre os dois, mesmo os dois sendo coreanos.
Isabela: Sim, sim. É, tipo… é também a questão de assimilação, assim, a sociedade brasileira; o Brasil nunca foi muito… amigável, e meio que pra se assimilar na sociedade branca brasileira meio que tiveram que se converter também ao cristianismo. Por exemplo, imigrantes japoneses no Brasil sofreram bastante perseguição durante a Era Vargas, eu acho.
Julia: A Segunda Guerra?
Isabela: A Segunda Guerra, sim. Inclusive, eu acho que na minha cidade teve meio que uma caça a conspiradores do Japão.
Julia: Tipo, aquele Shindo… o Shindo Renmei? Não lembro o nome…
Isabela: Eu não sei como é que é o nome, mas, que eu saiba, por exemplo, acho que proibiram falar japonês, assim, em geral no Brasil e tipo, é basicamente por isso que eu não sei japonês. Meus pais nunca aprenderam e eu também não, porque meus pais não sabem, tiveram que aprender português porque, senão, a polícia poderia prender meus avós, meus pais… meus pais não, mas meus avós.
Julia: O que mais?
Isabela: Aí… o que mais posso falar…? É, sobre ser trans, sim, falando mais sobre ser trans. E tentando ir pra, talvez, uma área mais… mais geral, assim, não concentrando muito em questão de família. É…
[Silêncio por alguns segundos]Julia: Eu sei—
Isabela: [Interrompe] Pelo menos–
Julia: Desculpa, desculpa.
Isabela: Ah, eu tô tentando pensar na minha experiência. Geralmente eu costumo não dizer que eu sou trans para as pessoas, ainda mais meio que por medo, eu acabo nem dizendo. Eu acho que as pessoas não esperam que pessoas asiáticas possam ser trans, sinceramente. Existe muito uma expectativa, uma imagem mental do que é ser uma pessoa trans. Acho que não consideram direito que uma pessoa asiática pode ser trans. Acham muito estranho.
Julia: Tem fatores interessantes. Na cultura marrom, de modo geral, isso não é só em alguns países e tal. As identidades trans são bem antigas, né? Então Índia, Paquistão, Nepal têm suas identidades trans bem específicas da região. A região da Pérsia também tinha muitas identidades trans diferentes também. E há algumas identidades trans nos países árabes, um pouco menos até onde eu sei. Mas… A perseguição a isso veio de uma reação à colonização ocidental, e é muito engraçado, porque a reação à colonização deixou eles mais parecidos com os colonizadores, nesse sentido de perseguição.
Julia: Mas o que acho que é uma experiência das pessoas trans marrons no Brasil, é que a gente tem características físicas muito marcadas e muitas vezes associadas ao masculino. Então, muita sobrancelha, nariz muito grande, um rosto mais marcado. E essas coisas são algumas das coisas que mais dificultam essa questão de vivências. Então tipo, se eu não me forçar a entrar um pouco mais no padrão branco de feminilidade, eu vou sofrer mais transfobia. Então, por exemplo, se eu não faço a sobrancelha, eu definitivamente sofro mais transfobia. Se eu não cuido do meu cabelo de tal jeito, também vou sofrer mais transfobia e assim vai. Tem uma série de coisas que vão acontecendo, e essas são coisas que são bem demarcadas pra mim. São coisas que afetam a minha vivência trans, e tem um grupo de meninas marrons que a gente fala bastante sobre isso e tem toda essa questão, “ah, não tenha vergonha de sua sobrancelha; não tenha vergonha do seu nariz; não tenha vergonha da sua cor de pele”, assim por diante. Mas eu sempre falo pra elas, tipo, pra mim é impossível estar lá, e reforçar esse lado e dizer “não, eu vou deixar minha sobrancelha crescer e deixar ela ser natural” sendo que a quantidade de preconceito que eu vou sofrer vai aumentar muito. Então, é uma vivência muito complicada de se lidar. Eu tive bastante sorte que os meus bisavôs, por parte de mãe, não tinham muita barba ou quase nada de barba. Então, essa parte marrom de ter muita barba não veio deles, assim. Mas isso… Só essa questão de ter que lidar com barba e tal já é um problema, muitas vezes.
Isabela: Sim, sim. É muito uma questão dos padrões de pessoas brancas, sim.
Julia: Sim. E a própria questão de feminilidade, assim. Teve uma apresentação que eu fiz há uns dois, três anos atrás com a Tami, sobre mulheres asiáticas e tal, e queer. E a gente falou bastante sobre as mulheres históricas do mundo marrom, como elas eram mulheres fortes, o que também cai muito naquela visão de que mulher marrom é submissa, não vai se manifestar, que é oprimida e assim por diante. Então, esse orientalismo também é bem forte nesse sentido.
Isabela: Aham, sim, sim.
[Corte]Isabela: Alô, teste. Acho que agora está um pouco melhor.
Julia: Eu tô ouvindo bem.
Isabela: É que o meu áudio também tá passando pelo OBS e o que tá na stream é do OBS, não é do Jitsi.
Isabela: É, eu não sei direito o que eu poderia comentar, acho que eu posso abrir um pouco pras perguntas. Se alguém tiver alguma pergunta, quiser fazer. Podem escrever aí no chat.
Isabela: Ah é, outra coisa que eu ia comentar assim, tipo… é…
[Pausa]Julia: Eu não tô te ouvindo.
Isabela: Não, eu tô pensando ainda, eu acabei não falando nada, não. Tipo, é, o que eu vou falar é… tipo, as pessoas têm muito na cabeça um padrão de masculinidade, feminilidade. É muito da sociedade branca. Por exemplo, as pessoas olham homens do leste asiático como mais afeminados, e tem toda aquela piada racista do tipo “ah, japonês tem pinto pequeno”. É um estereótipo que, muitas vezes, pessoas brancas não entendem bem. Não sei exatamente como colocar isso em palavras.
Diego: Ahn, mas eu acho engraçado essa questão de o que é masculino, o que é feminino. Porque, por exemplo, eu, com cabelo preto, não levo misgender*. Mas aí, uma vez, eu pintei o cabelo, acho que foi de azul ou de verde, e aí, tipo, comecei a receber misgender. E aí, eu fiquei pensando, nossa, sei lá, será que se eu por um piercing, vou levar mais misgender? Será que, sei lá, se eu usar uma blusa rosa? E é muito engraçado como esse tipo de coisa afeta muito, sendo que é só… uma coisa tão aleatória. Tipo, é a cor de um tênis, é a cor de uma roupa, cor de cabelo. E como isso faz com que… as pessoas pensem que, sei lá, ah, “é maior a chance de uma mina pintar o cabelo do que de um cara pintar o cabelo”. Por aí vai.
Isabela: Sim, sim.
Julia: Isso me lembrou uma situação que ocorreu essa semana. Eu fui levar minha mãe no médico e, eu cheguei no estacionamento… eu tô sempre de cabelo preso. Eu imagino quando as pessoas olham pela janela do carro: “é uma pessoa com pouco cabelo, é homem”. Aí tipo, o cara chegou, “e aí, amigão, estaciona ali”. E eu, tipo, olhei pra ele, “tá com problema de visão?” Mas… É muito bizarro, porque, tipo… tá, isso me deixa mal, isso me deixa triste, mas eu sei que isso pode acontecer com outras mulheres, sei lá, marrons, que têm características mais fortes, de cabelo preso, sabe? E é bizarro, porque primeiro que ele nunca deveria ter tido essa intimidade de chegar e falar pra alguém, “e aí amigão”. Tipo, cara, te enxerga, sabe? Tu nunca falou comigo na vida, por que que tu tá me tratando assim?
Julia: E outra coisa que é essa questão de respeito, que acho que falta muito. E essa intimidade – acho que essas são duas coisas muito tóxicas na cultura brasileira, de modo geral – que as pessoas acham que têm uma intimidade que elas não têm, e com isso vem junto uma falta de respeito, às vezes até bullying. E aí vem essas piadas, racistas, de chegar e dizer… de usar estereótipos tóxicos pra fazer uma brincadeira com alguém. Então, já aconteceu várias vezes a gente andar na rua e alguém chegar e dizer pro Diego qualquer coisa, sei lá, “xing-ling”, umas coisas assim, sabe? E, tipo, as pessoas deveriam simplesmente ter mais respeito pelas outras, de modo geral. Nem estou falando de respeito às pessoas trans, mas respeito no geral. Eu acho que isso é fundamental.
Isabela: Sim, sim. Só estou aumentando, melhorando o brilho da câmera. Estava muito escuro. Sim, com certeza.
Julia: Tem um outro negócio nessa mesma linha, que é… eu odeio falar no telefone porque minha voz é grave e eu não faço muito esforço pra ela não ser, só que, tipo, eu me apresento para as pessoas, falo, “ah, é Julia”, aí do nada a pessoa começa a me tratar no masculino, assim. Então, “ah, Julia”, sei lá, e aí fala no masculino, umas coisas bizarras, assim.
Diego: Pra mim, acontece meio que o contrário, porque eu ainda não retifiquei meu nome. Então, sei lá. Conta de telefone, tá no nome morto, aí a pessoa fala, “eu quero falar com sei lá quem”. Eu falo, “pode falar”. E a pessoa fica, tipo… ela fica um tempo, assim, meio bugada. Mas ela, tá, dá continuidade. Só que eu vejo que enquanto ela vai falando comigo, ela vai falando no masculino. Sendo que, tipo… ah, no meu caso, isso é bom, sabe? Mas a pessoa tá se deixando levar só pela voz, sabe? E isso é muito…
Julia: [Observando o chat] Tinha perguntas ali?
Diego: Uh-huh.
Isabela: É, tem uma pergunta aqui do Fernando. Hã… deixa eu ver se teve mais alguma. É… [lendo o chat] “A parte de lidar com a família com preconceito em relação a ser trans. Além dos relatos que vocês trouxeram, como mais vocês sugerem lidar com essa situação?” Lidar com a situação?
Julia: A situação da família ser mais preconceituosa e tal, imagino que seja isso.
Isabela: Uh-huh.
Julia: Não é muito meu caso. [Risos]
Isabela: Eu não sei o que eu sugeriria, eu acho que ia depender muito de qual a reação da família primeiro. Pelo menos eu penso assim, que é sempre bom ter… pelo menos eu penso que é sempre bom ter… esperar o pior, sabe? Se te expulsarem da casa, mandarem você sair de casa sem nada, sem ter pelo menos… algum jeito de viver, procurar alguém que possa fornecer casa. Tipo, eu não tentaria dizer pra pessoa tentar convencer a família, porque às vezes simplesmente não dá mesmo. Acho bom evitar conflito, pelo menos. Acho que não precisa ficar tentando convencer a família a aceitar. Acho melhor deixar o tempo, assim, rolar.
Julia: Eu acho que tem uma coisa que dá pra fazer, pelo menos pra ter uma ideia, uma percepção de qual vai ser a reação da família, que é ir tateando o assunto. Então, tipo, sei lá, chegar um dia e falar, “ah, eu ouvi falar de um filme muito bom, vamos ver junto”, e aí é o filme da Alice Júnior, por exemplo. Ao longo do filme, tu vai ver a reação da tua família sobre o assunto, que as pessoas definitivamente vão comentar. E tu vai ver, possivelmente, o pior lado das pessoas comentando sobre isso. Então, tu já vai ter uma ideia, por exemplo, se tu tá vendo filme e o pai vai lá e fala, “se fosse meu filho, eu expulsava de casa”. Tu já vai ter uma boa ideia de como que teus pais vão agir. Claro que acho que as pessoas têm dois extremos: ou elas falam mais do que fariam ou fazem mais do que falam. Mas, igual, é uma boa forma de medir. Eu demorei bastante tempo porque eu tateei bastante o assunto com meus pais, e eu queria pelo menos ter acesso à faculdade pra tomar uma decisão dessas. Apesar de ter sido relativamente ok, foram muitos anos brigando e tateando isso com eles.
Isabela: Sim.
Diego: É, eu acho que mais importante caso a pessoa queira contar pra família independente de como tu acha que a tua família vai reagir é tu ser independente financeiramente. Acho que isso é o mais importante. Mas, tinha conversado essa semana com uma amiga e a gente tava falando sobre a questão de sair do armário e como, às vezes, essa questão de sair do armário é trazida como quase obrigatória quando tu é LGBT. Eu sei que no caso de pessoas trans, no caso de pessoas homossexuais, é diferente. Porque um tá lidando com a tua identidade e o outro com a tua sexualidade. Então, por exemplo, eu imagino que, sei lá, se eu fosse uma pessoa cis, homossexual, eu acho que eu ficaria super de boa sem falar nada pros meus pais. E eu não ia sentir nenhuma necessidade de… sair do armário pra eles. Ia viver minha vida e eles iam viver a vida deles, e era isso. Mas, sendo trans, eu acho que tem, acho que é meio que impossível tu… fingir, não sei. Tem pessoas como eu que só toleram e, tipo, no meu caso, o meu querer contar pra eles é muito mais por querer fazer as minhas coisas e poder fazer as minhas coisas por mim mesmo. Então, tipo, sei lá, retificar meu nome sem dar um monte de problema e etc., mais do que querer que eles me reconheçam como, tipo, “ah, um homem”, ou, sei lá, filho deles, etc., até porque tem muitas coisas que, colocando na balança, eu sei que isso pode soar muito… eu me deixar muito de lado na minha própria vida, mas tem coisas que eu acho que não valem a pena todo esse estresse.
Diego: Então… eu acho que aí entra muito a questão da família asiática pelo menos a família coreana, do tipo… “ah, primeiro filho”, os pais dependem totalmente do primeiro filho. E aí, tu tem… diversos pesos e não dá pra simplesmente jogar tudo isso pro ar e falar, “tá, eu sou trans, eu vou viver a minha vida do meu jeito e a vida de vocês, a vida de vocês, a minha, é minha, então eu faço o que eu quiser”. Então, sei lá, eu acho que no fim, pelo menos no meu caso, eu acabei aprendendo a aguentar, a viver meio que com esse fato.
Julia: Eu lembrei de dois fatos mais ou menos relacionados. Eu tenho um tio que é extremamente homofóbico com a filha dele. E comigo é uma situação meio bizarra. Ele me trata no feminino, mas usa o nome morto. Tipo assim, zoado. E a outra situação é que por conta da questão matrilineal, nas famílias judias, é a filha que fica com os pais, né? Então, a minha mãe e a minha tia estavam discutindo esses dias, e a minha tia estava meio triste que ela não ia ter ninguém pra cuidar dela no futuro. E aí a minha mãe falou, “ah, pelo menos eu resolvi esse problema, agora eu tenho uma filha” [risos]. Então foi uma situação assim, meio engraçada, assim, quando a transição ajudou a minha mãe, pelo menos em questões culturais, assim.
Isabela: Ah, sim. Na minha experiência, tipo… Eu tentei discutir com a minha família. Eu vou dizer que eu acho que não adiantou nada. É… Pelo menos discutir. Aí, tipo, meio que deixar de lado, assim. Pelo menos, tipo, mesmo que… Sei lá, eu não fique… Talvez a minha mãe ainda fica me chamando pelo meu nome morto, às vezes, e tipo, pelo menos eu não fico… às vezes ela tenta, eu acho, eu diria. Às vezes ela usa a/ela/a pra mim, e eu meio que desisti de discutir. Discutir, todo mundo vai… eu vou me machucar com a discussão e ela vai ficar irritada e só vai ficar gritando comigo. E, sei lá, nunca funcionou muito bem.
Isabela: Mas falando nesse outro ponto aí, sobre ser… na cultura japonesa também tem questão de ser primogênito e tal, ter certos privilégios. Eu sou a primeira filha, né? Então eu acho que isso talvez tenha sido um choque maior pra minha família. Tipo, eu acho que um dos meus irmãos meio que trata como se eu tivesse jogado tudo que eu tinha, todo o meu privilégio fora, por exemplo. Mas, é, eu joguei mesmo [risos].
Julia: Acho que essa questão de sair do armário também, em famílias asiáticas de modo geral, é uma coisa que talvez seja legal fazer para facilitar tua vida, mas em muitos casos não vai funcionar. Que nem o que vocês estão falando. Família, ela tá nem aí. Tipo, eu conheço outras meninas, não trans necessariamente, mas bis e lésbicas, que a família simplesmente ignora. Não é que a família tá lá, jantam juntos, mas se ela levar uma namorada, ela fala, “ah, não leva mais aquela tua amiga”, ou “chega dessa amiga aqui em casa”.
Isabela: Sim, sim. É, eu simplesmente falaria, tipo… é, acho que… é muito complicado se abrir, assim, pra família. Eu diria que… não é um negócio que vale muito a pena também. A menos que você goste muito dessa família.
Julia: Sabe que a minha prima casou antes de contar pra família? Ela namorou a menina por quatro anos, aí ela pediu pro meu primo fazer, acho que na época era só união estável, não tinha casamento ainda, e só depois que ela contou pra minha família como um todo. A minha mãe e minha tia já sabiam, mas pro resto da família foi só depois de casada. E aí, a minha tia-avó, uma vez, no Pesach, que é uma das festividades mais importantes, explicitamente falou, “ai, não traz aquela tua amiga”, que é tipo, a esposa dela [risos]. Então, tipo…
Isabela: Aí não sei, tem mais alguma pergunta? Ah, tá, tem uma. Às perguntou aqui: [lendo o chat] “Tem algo que vocês queriam que fosse feito em espaços trans/NHINCQ+ para que pessoas asiáticas se sintam mais bem-vindas, especialmente quando já é algum espaço majoritariamente branco?”
Julia: Pra mim, eu acho que o mais importante são espaços como esses, tipo, onde a gente vê que não somos as únicas pessoas trans, sei lá, no caso judia, coreanos, japoneses, asiáticas, de modo geral, acho que isso é o mais importante. Eu conheci uma outra menina trans judia que não era marrom, mas foi assim, já foi uma grande coisa assim, porque a minha mãe conhecia a mãe dela e tal, então isso ajudou um pouco. Mas acho que é ter esses espaços de diálogo e deixar essas coisas mais transparentes e todo mundo poder trocar ideia, acho que acaba sendo mais importante do que a resistência ou não de pessoas brancas.
Diego: É, eu acho que, na verdade, a questão de pessoas asiáticas se sentirem mais bem-vindas, o buraco é mais embaixo, né? Porque se até as pessoas cis ou cis/heteronormativas não se sentem confortáveis em certos espaços também, sabem que vão ser, sei lá, alvo de chacota ou preconceito e tals, tipo, se pra essas pessoas que estão nas normas da sociedade é foda, pra gente, então é tipo… sei lá, quando paro pra pensar quantas pessoas trans e asiáticas eu conheço, tipo, quase ninguém. E eu acho que tem muito isso de, tipo… não querer, tipo, dizer que tu é trans, sei lá, sabe? Eu, por exemplo, eu não falo que eu sou trans. Eu não falo nada, não falo nem que eu sou cis. Eu só, tipo, fico na minha, sabe? E imagino que devam ter outras pessoas que também estão nessa situação. Porque é mais uma incomodação, querendo ou não. Tipo, sei lá, aqui já me veem, tipo, como diferente só porque eu sou asiático. E aí, se eu falar que eu sou trans, vão ser, tipo, duas coisas em cima. E aí, sempre vai ter aquele lance de, tipo, “ai, mas é só uma curiosidade”, ou, tipo, sei lá, te enchem de perguntas ou invadem tua privacidade. Então, tipo… mas é, eu acho que é importante ter essas rodas de conversa e tal, como a gente tá tendo agora. Mas não sei o que seria…
Julia: O que uma pessoa branca pode fazer? Nunca parei pra pensar nisso [risos].
Isabela: Sim, sim, eu acho que é bem isso mesmo. Eu tenho uma experiência bem parecida. Tipo, eu geralmente acabo… não falando que eu sou trans, ainda mais porque tem essa questão, assim, de ser uma pessoa asiática e… é, eu acho que é bastante importante, sim, esses espaços. Tanto é que, tipo, das opções que eu tava pensando em falar, eu acho que… Por esse motivo que eu escolhi, assim… o tema desse painel/roda, que eu acho bastante importante, tipo, ter o espaço para compartilhar essa intersecção de raça e… identidade de gênero. Eu vejo bastante peculiaridades que as pessoas simplesmente não sabem que existem, e acho bastante importante esse espaço.
Julia: Sim. Mais alguma pergunta?
Isabela: Eu acho que também tem a questão como imigrante, não só a questão de raça, mas também a questão de ser imigrante em um país que é… tem… como é que fala? É… supremacia. Que tem, tipo, uma supremacia branca. Aí a próxima pergunta é de Às: [lendo o chat] “Tem alguma bandeira de orgulho que há ou que vocês queriam que houvesse apenas para pessoas NHINCQ+ asiáticas, assim como tem uma bandeira para pessoas NHINCQ+ autistas, negras, pessoas trans negras, pessoas queer racializadas, plurais queer, pessoas neurodivergentes queer, pessoas trans com baixa disforia, etc.?”
Julia: Eu até tinha falado com vocês uma época de fazer a bandeira não-binária substituindo o branco por marrom. Tipo, isso é algo que eu tinha no meu Twitter há um tempo atrás, assim. Eu acho que é a bandeira, no sentido de bandeira. Eu não ligo mais tanto pra bandeira. Eu gosto da não-binária porque eu gosto das cores, em especial. Mas eu sinceramente não ligo mais muito pra… para as bandeiras, mas essa é uma que eu achava legal mesmo.
Isabela: Sim, acho que a ideia é interessante. Se–
Diego: [Interrompe] É, eu–
Isabela: Pode falar.
Diego: É, eu pessoalmente também não ligo muito pra bandeiras, mas acho que se tivesse seria legal.
Isabela: Com certeza.
Julia: Eu, inclusive, já me acostumei com a bandeira de arco-íris [risos]. Era uma coisa que eu odiava há pouco tempo atrás.
Isabela: Ah, sim. Eu não consigo pensar, assim, que tipo de design deveria ser. Mas seria legal ter. É, não sei se… acho que o maior problema, na verdade, eu acho que seria tipo fazer a bandeira pra população trans asiática, assim… é uma minoria bem pequena. Não sei.
Julia: Tem uma pergunta de Aster ali sobre se é uma bandeira marrom. Sim, ela seria uma bandeira marrom. É muito difícil juntar, apesar de ter muitas similaridades entre os povos marrons e amarelos, são povos com mais dessimilaridades. São povos heterogêneos entre si. Metade do mundo, quase, é marrom, sabe? Vai da Índia, Ásia Central, o Oeste Asiático, Levante, Ásia Menor, todo o norte da África praticamente, é uma galera– tem partes na Europa, parte na Rússia. É uma galera muito extensa pra colocar junto só como Ásia, porque tem muitos povos que estão fora da Ásia e são marrons, assim como tem a heterogeneidade interna dentro dos povos asiáticos marrons, e assim como tem a heteroge– [gaguejando], não sei mais falar [risos], entre os povos amarelos com os povos marrons. Então não tem muito como juntar os dois tão, tipo, dizer, “ah, orgulho asiático”. É uma coisa que no contexto do Brasil faz pouco sentido, porque quando as pessoas pensam em asiático, elas só pensam em amarelos. Ninguém nunca pensa em marrom.
Isabela: Sim, verdade.
Isabela: Acho que é isso. A gente já falou por uma hora. Pelo menos eu acho que deu pra contar bastante da minha experiência. Eu não sei se vocês têm mais alguma consideração final? Algo que queiram falar?
Julia: Tem uma pergunta interessante ali na questão de socializar, sobre que tipo de cuidados que a gente toma pra encontrar espaços que sejam receptivos. Eu acho que eu e o Diego, na verdade, a gente começou a ocupar espaços não receptivos nos últimos anos, assim.
Diego: Na verdade, no meu caso, pelo menos. Nunca fui muito de socializar, mas depois que eu comecei a transição, e comecei a tomar mais consciência da questão de raça e etc., eu quis procurar, mais do que espaço, pessoas que tiveram uma vivência parecida com a minha, então eu me inseri, pelo menos na questão de raça, em grupos com pessoas asiáticas, por mais que agora eu tenha saído desses grupos, porque grupos no geral não me fazem muito bem. Mas tenho tentado manter mais contato com pessoas mais parecidas a mim. E aí quando é pra, sei lá, só de pensar em entrar num espaço que eu sei que ou vou ter que educar as pessoas ou que vai me gerar algum tipo de estresse, eu já nem penso em participar por receio, e acho que é isso.
Julia: Ah, mas a gente frequenta alguns lugares.
Diego: Não, sim, mas frequentar alguns lugares por precisar, ou tipo, pra ir rapidinho, sim, mas sei lá, pra socializar…
Julia: Ah [risos], a gente não socializa no modo geral.
Diego: Nossa, é muita… é muita dor de cabeça pra às vezes as pessoas nem serem tão legais assim. [Risos]
Julia: Até com outras pessoas trans, teve muitos momentos desagradáveis de grupos.
Diego: Ah sei lá, pra mim, tudo bem, eu vou me sentir mais confortável num grupo de pessoas trans do que num grupo de pessoas cis mas, por mais que a gente compartilhe esse fato de ser trans, como a vivência é muito diferente, é muito aleatório. Então, sei lá, sabe? Eu chegar e falar dos meus problemas em relação à minha família e a pessoa simplesmente falar “ah, por que tu não conta e deu”, sabe? Sem entender que tem todo um contexto de recorte de migração e etc., sabe? Isso é muito… eu cansei de ficar explicando.
Isabela: Sim, sim. Eu não sei que tipo de cuidado que eu teria pra procurar espaços mais receptivos. Acho que primeiro, tipo, tem certos espaços que eu meio que coloco assim, não? Tipo, sei lá, espaços que tenham uma quantidade grande de… homens gays, por exemplo. É, eu nunca fui, assim, tipo, com pessoas asiáticas, eu acho que eu… eu só tive contato, assim, mais com o grupo lá, Asiáticos Pela Diversidade. E, não sei, tipo, eu acho que primeiro eu meio que tento, assim… como é que… aquelas pessoas, tipo, colocar o pé, assim, na água pra ver se… tipo, que tipo de pessoas elas são? São pessoas que respeitam pessoas trans? São pessoas que respeitam o pronome das pessoas, por exemplo? Seriam, pelo menos, alguns cuidados, que é a primeira coisa que eu presto atenção. E… da questão de como as pessoas lidam com pessoas racializadas também, eu acho super importante. Tipo, se são pessoas que são abertas, pessoas que não são brancas, por exemplo, mais abertas. Acho que são fatores super importantes.
Julia: Acho que é isso. E é um bom tema pra fechar também, né?
Isabela: Ah, sim. Sim, sim. Verdade.
Isabela: É, aí eu acho que é isso. Como eu disse antes, essa stream tá sendo gravada, acho que vai estar disponível mais pra frente no blog do Orientando. E é isso. Obrigada a vocês que puderam participar. Acho que foi bem legal a conversa. Acho que seria bom marcar mais vezes as coisas.
Julia: Obrigada pelo convite também.
Isabela: A gente pode marcar também de comer num restaurante depois que acabar a pandemia.
Julia: Era uma boa, era uma boa. Quando vocês vierem para Porto Alegre, ou quando a gente for para São Paulo.
Isabela: Sim, sim. É, faz tempo que eu não vou para Porto Alegre.
* To misgender é um verbo na língua inglesa cujo equivalente na língua portuguesa é maldenominar. Maldenominar alguém se trata de errar, propositalmente ou não, a linguagem pessoal da pessoa, o nome que a pessoa dá à sua identidade de gênero e outras palavras em torno disso. Por exemplo, se alguém chamade Ariel usa somente ê/ele/e e uma pessoa começa a se referir a ele usando o pronome ela, isso é maldenominação. (Clique no asterisco ou aqui para retornar à transcrição.)
No Comments Yet
Pings and Trackbacks (1 )