Intersexo é um termo utilizado para um grupo de variações congenitais de anatomia sexual ou reprodutiva que não se encaixam perfeitamente nas definições tradicionais de “sexo masculino” ou “sexo feminino”.
Por exemplo, uma pessoa pode nascer com uma genitália que aparenta estar entre o que é usualmente considerado um pênis e uma vagina. Ou a pessoa pode ter nascido com um mosaico genético, onde parte das células possui cromossomo XX e outra parte possui cromossomo XY.
Enquanto normalmente se fala de intersexualidade como uma condição congênita (que está presente desde o nascimento), a anatomia intersexo nem sempre está presente ou visível no nascimento. Algumas vezes, a pessoa só descobre que pode se considerar intersexo durante a puberdade, ou quando descobre que é infértil durante a vida adulta, ou quando morre e é feita uma autópsia. Algumas pessoas vivem e morrem com uma anatomia que seria considerada intersexo sem que ninguém saiba (incluindo elas mesmas).
Quais variações da anatomia sexual contam como intersexo? Na prática, diferentes pessoas podem ter diferentes respostas para esta pergunta. O que não é surpreendente, já que intersexo não é uma categoria exata.
O que isso significa? Intersexualidade é uma categoria socialmente construída que reflete uma variação biológica real, assim como a definição de “sexo masculino” ou de “sexo feminino”. Para explicar isso melhor, podemos ver o espectro sexual como o espectro de cores. Não há dúvida que na natureza existem ondas eletromagnéticas que traduzem em cores que a maioria de nós vemos como vermelho, azul, verde, etc. Mas a decisão de distinguir e categorizar, por exemplo, laranja e vermelho-laranja, somente é feita quando necessitamos ou queremos, por exemplo, quando queremos um certo tom de cor.
Do mesmo jeito, a natureza nos apresenta espectros sexuais. Seios, pênis, clitoris, gônadas, vagina – todos esses órgãos variam em tamanho, formato e morfologia. Até mesmo os “cromossomos sexuais” podem variar consideravelmente. Mas na cultura humana, categorias sexuais são simplificadas em “macho”, “fêmea”, e algumas vezes “intersexo”, para simplificar interações sociais, expressar o que nós sabemos e sentimos e manter uma ordem.
A natureza não decide onde a categoria “macho” acaba e onde começa a categoria “intersexo”, onde a categoria “intersexo” acaba e onde a categoria “fêmea” começa. Pessoas decidem, através da designação de gênero ao nascimento. Pessoas (hoje, tipicamente da área da medicina) decidem o quão pequeno o pênis tem que ser, ou o quão incomum uma combinação de partes tem que ser, para alguém contar como intersexo. Pessoas que decidem se uma pessoa com cromossomo XXY ou XY e insensibilidade a andrógenos conta como intersexo.
A opinião de médiques sobre o que conta como “intersexo” varia consideravelmente. Algumes acreditam que é necessário ter uma genitália ambígua, mesmo que por dentro seja predominante categorizado com de um sexo e fora de outro sexo. Outres acreditam que é necessário que o cérebro precise ter sido exposto por uma mistura atípica de hormônios pré-natalmente. Já outres acreditam que é necessário ter tanto tecido testicular quanto ovariano para contar como intersexo.
No final do século XIX, a medicina se tornou o principal meio de lidar com intersexualidade. Antes disso, a grande maioria das pessoas com condições intersexo passavam sem nenhum tipo de reconhecimento ou atenção religiosa, legal ou médica e somente poucos casos por ano recebiam atenção de autoridades. Presumidamente, outras pessoas com as chamadas “anatomias sexuais anormais” viviam vidas regulares, tanto porque suas variações anatômicas eram imperceptíveis ou não eram consideradas especialmente importantes. Quando ume recém-nascide tinha um alto grau de ambiguidade genital, parteiras, avós, e outras pessoas idosas locais eram quem designavam o gênero. (Em termos de orientação sexual, era esperado que todas as pessoas tivessem relações somente com pessoas que eram identificadas como do “sexo oposto”; em muitos lugares, a violação dessa regra era punida com meios violentos, e algumas vezes até fatais.)
No entanto, ao final do século XIX, através de ciências ginecológicas e de numeras examinações médicas militares, doutóries viram que as anatomias sexuais “anormais” eram na verdade bem comuns. Médiques dessa época começaram a reportar dezenas de casos por ano de “hermafroditismo” e de “pseudo-hermafroditismo”. Como muites especialistas médiques eram politicamente conservadores e queriam manter as fronteiras sexuais definidas para combater a “homossexualidade aberta” e a ascensão do feminismo, a existência intersexo causava um estresse notável. (A fusão de sexo, orientação sexual e expressão de gênero é perceptível nos anos de 1890 com o uso do termo “hermafroditismo psíquico” pra se referir a homens gays, e com a afirmação “científica” comum de que a educação de universidades fisicamente “masculinizavam” mulheres.) Portanto, especialistas em biomedicina criaram um sistema onde todo mundo seria classificado como “verdadeiramente homem” ou “verdadeiramente mulher”, independentemente da extensão ou da realidade natural da anatomia intersexo.
Doutóries então criaram um padrão arbitrário baseado no tecido gonadal, que persiste em muitos textos médicos hoje. Uma pessoa com uma anatomia sexual fora do padrão e tecido ovariano é vista como “fêmea pseudo-hermafrodita”; Uma pessoa com anatomia sexual fora do padrão e tecido testicular é vista como “macho pseudo-hermafrodita”; E se a pessoa tem tanto tecido testicular e ovariano, é vista como “verdadeira hermafrodita”. Dado as limitações tecnológicas da época, doutóries vitorianes gostavam deste sistema porque não era possível facilmente diagnosticar “hermafroditismo verdadeiro” em pessoas vivas. Como consequência, as pessoas “hermafroditas verdadeiras” eram somente pessoas mortas e dissecadas; a única informação sobre intersexualidade vinha de exames póstumos.
Todas as outras pessoas intersexo, incluindo pessoas “pseudo-hermafroditas”, eram classificadas como “verdadeiramente machos” ou “verdadeiramente fêmeas” e eram ordenadas a agirem socialmente e sexualmente de forma normativa, no seu gênero designado. No entanto, com o desenvolvimento de técnicas médicas e com o aumento do acesso a assistência médica, muitas pessoas estavam sendo diagnosticadas com um “sexo verdadeiro” biológico que não fazia sentido socialmente. (Durante os anos de 1910, assim como hoje, mulheres com insensibilidade a andrógenos não podiam ser classificadas como homens só porque possuíam tecido testicular.)
Em um paradigma cissexista, não havia categoria social para pessoas que eram diagnosticadas com “hermafroditismo verdadeiro”. Então, durante os anos de 1920, especialistas que trabalhavam com intersexualidade desenvolveram a noção de gênero (papel social) separado da anatomia sexual. E então começaram a oferecer “correções” cirúrgicas mais ativamente para trazer o sexo biológico em linha com o gênero designado. Isso levou ao desenvolvimento de aproximações teóricas e técnicas cirúrgicas, porém a motivação continuava a mesma: manter as categorias sexuais distintas e binárias.
É interessante notar que, durante a segunda metade do século XIX, uma pequena porcentagem de pacientes intersexo já haviam começado a pedir por cirurgias, e alguns cirurgiões já haviam começado a oferecer uma reconstrução genital. Com a exceção de raras clitoridectomias que eram praticadas em crianças porque tinham grandes clítoris, a grande maioria de cirurgias genitais eram praticadas por motivos cosméticos e eram solicitados por adultos. Tanto pacientes quanto cirurgiães geralmente evitavam cirurgias eletivas por razões de segurança. Também havia motivos para acreditar que muitas pessoas intersexo eram socialmente saudáveis sem cirurgia; pessoas intersexo não viviam desproporcionalmente como eremitas ou tentavam suicídio. O psicologista John Money estudou pessoas adultas intersexo e descobriu, antes da era da intervenção cirúrgica cosmética para intersexo, que essas pessoas possuiam uma taxa menor de psicopatologias que a população em geral.
Como muitos outros campos de biologia, sexualidade e psicologia, intersexualidade se tornou um foco da medicina. Para um pequeno número de pessoas intersexo, isto é, para aquelas pessoas com risco de câncer gonadal ou hiponatremia, a medicalização da intersexualidade provavelmente melhorou sua saúde, e até mesmo salvou a vida de algumas. Porém, a maioria dos tratamentos para pessoas intersexo eram motivados não por questões de saúde metabólica, mas sim por preocupações psicossociais; assim como nos anos de 1890, nos anos 50, intersexualidade era vista primariamente como um problema psicossocial que misturava categoriais sexuais em uma maneira socialmente desconfortável.
Nos anos 50, a Universidade de Johns Hopkins criou um time e se tornou o primeiro centro médico a oferecer uma aproximação multidisciplinar para intersexualidade, uma que desejava essencialmente eliminar a intersexualidade durante a infância. A aproximação desenvolvida lá ficou conhecida como o modelo de “desenvolvimento de gênero ótimo”. A ideia básica era que o potencial de cada criança para uma identidade de gênero “normal” deveria ser maximizada fazendo com que o corpo da criança, sua criação, e mente alinhem o máximo possível. E por causa de uma crença de que era mais difícil cirurgicamente criar um menino do que uma menina, muitas crianças intersexo eram submetidas a cirurgias, endocrinologia e tratamentos psicológicos para que se tornassem o mais “feminino” possíveis. Ume paciente de “sucesso” era quem era julgade como estável e “normal” (ipso/hétero) em seu gênero atribuído. (Numa era em que esquadrões anti-drogas invadiam bares gays, não era surpresa que desvios das normas de gênero e atração eram vistos por muites profissionais como insustentáveis.)
Mesmo que os primeiros textos deste time defendessem falar a verdade e oferecer suporte psicológico consistente, na prática, muites pacientes eram enganades e recebiam suporte psicológico mínimo. Assim como na maior parte da medicina, doutóries faziam as decisões para es pacientes. Havia pouco investimento de ideias de consentimento informado ou de estudar saídas de modo sistemático. (Não foi até os anos 60 que profissionais da medicina começaram a agressivamente procurar por casos de intersexualidade.)
O psicologista John Money forneceu o suporte teórico para o modelo Hopkins. Ele argumentou que a identidade de gênero era em grande parte mutável nos primeiros anos de vida, que a criação era mais importante que a natureza. O maior suporte para este argumento veio do famoso caso conhecido como “João/Joana”. A pessoa em destaque, David Reimer, nasceu como um gêmeo idêntico, não intersexo, em 1965. Enquanto estavam fazendo uma circuncisão, um doutor acidentalmente queimou o pênis de 5 meses de David. A família de David consultaram com o time de Hopkins, e Money recomendou que mudassem a genitália e o gênero da criança e que criassem David como uma garota. Por decadas Money erroneamente promoveu o resultado bem sucedido porque a criança havia reportadamente “virado” uma garota “normal”, que se “identificava de forma feminina”, e heterossexual. A verdade era que David nunca se sentiu verdadeiramente do gênero feminino. E de fato, quando alguém de sua família contou a verdade sobre o que aconteceu, David imediatamente reassumiu seu papel de gênero como homem.
Não se sabe o porquê de Money, que em 1953 achou um nível relativamente baixo de psicopatologia entre adultes intersexo, achar que pessoas intersexo devessem ter seu sexo e gênero cirurgicamente e socialmente construídos para serem psicologicamente saudáveis. Mas as pessoas não questionaram a teoria controversa de Money relacionada à criação-acima-de-natureza. Cirurgiães e psicologistas gostavam da teoria porque isso significava que estavam fornecendo bons cuidados para crianças “anormais”. Feministas gostavam dessa teoria porque preferiam que a ideia que gênero – e portanto normas de gênero – era totalmente socialmente construído e maleável. Responsáveis provavelmente gostavam também porque podiam ter certeza que suas crianças com corpos “anormais” poderiam crescer e se tornarem adultes hétero e “normais”.
Mas algumas pessoas não gostavam desse sistema: pessoas que, como David Reimer, se sentiram maltratadas no melhor caso, e medicamente violadas no pior. De qualquer forma, a maioria ficou em silêncio, acreditando que estavam sozinhes em suas experiências.
Isso mudou em 1993, quando a bióloga feminista Anne Fausto-Sterling publicou artigos no The Sciences e The New York Times expondo o básico fato que intersexualidade existe. Em resposta, Cheryl Chase escreveu uma carta ao The Sciences anunciando a fundação da Sociedade Intersexo da América do Norte (ISNA). Em seguida a Accord Alliance foi fundada como sucessora direta da ISNA, e a Organização Intersexo Internacional (OII) foi fundada em 2003.
Uma das bandeiras intersexo foi criada pela Organização Intersexo Internacional da Australia (OII-Australia) em 2013. Ela possui o contorno de um círculo contínuo roxo no centro para simbolizar a completude, a integralidade e o potencial de pessoas intersexo, além de representar o direito de viver e ser como quiser. O fundo amarelo e a cor roxa são usados porque essas cores tipicamente foram associadas a “hermafroditismo”. O design da bandeira foi pensado para evitar o uso de cores tipicamente associados a papéis de gênero e também evitar derivações de outros símbolos de orgulho.
Outra bandeira, criada por Natalie Phox em 2009, consiste de cinco faixas horizontais coloridas (de cima pra baixo): lavanda, branco, uma faixa azul e outra rosa com gradiente no centro, branco e lavanda. O gradiente de azul e rosa representam o espectro de “sexo” entre “masculino” e “feminino”, e a cor lavanda representa a mistura de traços “masculinos” e “femininos”. Ela é constantemente confundida com uma bandeira bigênero, pela descrição original de Phox ter sido relativamente ambígua.
Uma terceira bandeira foi proposta em 2017 por ume usuárie anônime no Tumblr. Ela consiste de três corações com as cores azul, roxo e rosa no centro e cinco faixas verticais: roxo, amarelo, branco, amarelo e roxo.
Existe também uma bandeira exclusiva para o ativismo intersexo no Brasil. Ela possui um fundo roxo e um triângulo branco apontado para cima em seu centro, além de três finas faixas horizontais no segundo terço da bandeira, nas cores verde, amarela e verde.
A cor roxa representa a ambiguidade da condição intersexo, já que corpos de pessoas intersexo são considerados ambíguos. As faixas verdes e a faixa amarela representam o Brasil.
O triângulo representa que o sexo de uma pessoa intersexo é diferente do “masculino” (geralmente representado como um quadrado) e do “feminino” (geralmente representado como um círculo), e sua cor branca representa as infinitas possibilidades de identidades de gênero que uma pessoa intersexo pode ter. Afinal, sexo não é ligado a gênero.
Muitas pessoas intersexo utilizam intersexo como seu gênero. O termo intergênero foi sugerido por uma pessoa intersexo que não gosta de ver pessoas considerando intersexo um gênero, mas existem pessoas intersexo que não conhecem o termo, ou que preferem continuar utilizando intersexo.
Texto em grande parte traduzido e adaptado da Sociedade Intersexo da América do Norte (http://www.isna.org). Fontes: What is intersex?, What’s the history behind the intersex rights movement?
Links adicionais:
- Bandeira Intersexo – Organização Intersexo Internacional da Austrália
- O que é Intersexo? – Sociedade Intersexo da América do Norte
- Qual a história por trás do movimento de direitos intersexo? – Sociedade Intersexo da América do Norte
- O quão comum é a condição intersexo? – Sociedade Intersexo da América do Norte
- Uma pessoa intersexo é hermafrodita? – Sociedade Intersexo da América do Norte
- Designação sexual em crianças intersexo: uma breve análise dos casos de “genitália ambígua” – Caderno de saúde pública
- Designação Sexual – Wikipedia
- Panfleto sobre o que é ser intersexo
- Bandeiras intersexo (Pride-Flags): [1] [2] [3]; bandeira brasileira