Um espaço de aprendizagem

Posts for : setembro 2017

A culpa des excluídes  2

Boa parte das pessoas LGBTQIAPN+ – e, convenhamos, especialmente quem tem não tem sua identidade explicitamente descrita na sigla – já ouviu falar que estamos “complicando as coisas demais”, que estamos criando rótulos “desnecessários” ou “específicos demais”, que temos “fetiche por rótulos”, que estamos “reforçando normas” ou “colocando pessoas em caixas” por meio da existência de rótulos, ou da identificação com estes rótulos.

Já escrevi sobre o possível motivo das pessoas preferirem certos rótulos ao invés de rótulos mais “comuns” ou “óbvios”. Esta postagem é mais para questionar a direção da raiva, indignação ou frustração das pessoas que não compreendem o motivo desses rótulos existirem.

Quando questionam a existência da identidade pan, já que bi supostamente incluiria qualquer tipo de atração por mais de um gênero, é a comunidade pan que é questionada, ou vista como dramática: não se pensa em quanto comunidades bi empurraram tanto ideais cissexistas (de não incluir pessoas trans em sua atração) ou exorsexistas (de considerar que só existem dois gêneros, homem e mulher, e que esses devem ser os gêneros pelos quais pessoas bi são atraídas).

Aliás, quando questionam a existência da identidade bi, é a culpa da própria comunidade bi que “quer fazer modinha”, e não do heterossexismo que coloca a atração por determinado gênero como importante, ou do monossexismo da sociedade em acreditar que uma pessoa só pode ter atração por um ou por outro gênero.

Quando questionam o uso de bi e pan ao invés de bissexual ou pansexual, a culpa é das comunidades assexual e arromântica que quiseram “esmiuçar orientações desnecessariamente”, não da insistência da sociedade em tratar amor e sexo como um pacote único.

Quando questionam identidades como gênero-fofo, gênero-estrela e altegênero, são essas pessoas as culpadas por “confundir gostos/personalidade com gênero”, “trivializar questões trans” ou “criar caixinhas”, e não a sociedade que é culpada por reforçar a ideia de dois gêneros binários distintos com expectativas definidas, e depois reclamar que várias pessoas não querem se identificar com esses gêneros não importa o quanto há uma flexibilidade maior dessas expectativas.

A culpa também certamente não é das pessoas que assumem coisas sobre rótulos menos específicos como não-binárie e gênero queer, descrevendo pessoas que se identificam como tal como “sem gênero” ou “meio homem meio mulher” ou “neutras” ou “confusas sobre gênero” sem ao menos perguntar como experienciam sua não-binariedade. A culpa também não é de pessoas não-binárias de rótulos mais abrangentes ou até mesmo “aceitáveis” que pregam o quanto suas experiências não-binárias são as únicas que existem.

Transgênero como palavra para substituir transexual? A culpa é desse bando de floquinhos de neve especiais que não conseguem se decidir se são trans ou não e que se ofendem com qualquer tipo de cissexismo casual, não da comunidade médica que usa transexual como diagnose, ou de setores da comunidade transexual que reforçam ideais exorsexistas, ou até mesmo a ideia cissexista de que só pessoas trans que passam por transição médica possuem o direito de serem respeitadas como seu gênero de verdade.

Rotular a orientação como queer? Pra quê, pra se achar? Porque certamente não é por causa do cissexismo em comunidades gays e lésbicas, ou do estigma da palavra bissexual, ou da rejeição de outros rótulos pela sociedade em geral ou mesmo por comunidades LGBT- como ridículos e desnecessários.

Cupiossexual, demissexual, gray-assexual? Só diga assexual! Mesmo que isso faça as pessoas questionarem sua identidade assim que você expressar interesse sexual em alguém, ou falar que gosta de sexo, ou que quer sexo. Mesmo dentro da própria comunidade assexual.

Se palavras existem, há razão para elas. Não importa o quanto você não as usaria. Rótulos servem para mostrar que existem possibilidades, não para estereotipar ou limitar. Caso você não se sinta confortável com seu rótulo, use outro, e confie que outras pessoas possuem discernimento para fazer o mesmo.

Qualidades de gênero  6

Atualização de 22/07/2020: Esta postagem é antiga, e teria sido completamente diferente se fosse feita hoje em dia. Quero que quem leia tenha as seguintes coisas em mente:

  1. Todas essas definições, especialmente as relacionadas com gêneros binários, partem de um ponto de vista branco, que parte de uma cultura eurocêntrica e cristã. Outras culturas/sociedades vão perceber essas características de forma diferente e/ou ter outras características relacionadas com gêneros.
  2. Estas qualidades de gênero podem ser chamadas de elementos de gênero em outros contextos, e eu provavelmente teria postado sobre eles caso o termo tivesse sido cunhado na época. Elementos de gênero são coisas que fazem parte da experiência de gênero e que geralmente interagem com a identidade de gênero, podendo ser um aspecto importante de tal identidade, mas que podem ser descritos à parte da identidade de gênero.
  3. Ambiguidade, autonomia, outerinidade… diversas outras qualidades de gênero já foram cunhadas. Esta postagem não é nada completa como uma lista de referência.
  4. Esta postagem usa gênero feminino binário como sinônimo de mulher, e gênero masculino binário como sinônimo de homem. Porém, classificar mulheres como um gênero feminino e homens como um gênero masculino tanto estigmatiza pessoas binárias que não são femininas/masculinas quanto pessoas não-binárias cujos gêneros são femininos sem ter a ver com ser mulher, masculinos sem ter a ver com ser homem, parecidos com mulher sem serem femininos ou parecidos com homem sem serem masculinos.

Este é um assunto complexo, abstrato e subjetivo. Esta postagem não possui o intuito de classificar pessoas em categorias contra suas próprias vontades, ou de dizer que existem pessoas que precisam trocar seus rótulos porque estão utilizando tais rótulos do jeito errado. Confio que cada pessoa tenha seus motivos para utilizar ou não utilizar certos rótulos, e acredito que nem todas as pessoas precisem de rótulos ou de alinhamentos, além de acreditar que há possibilidades infinitas de qualidades de gêneros, assim como existem possibilidades infinitas de experiências de gênero.

Também gostaria de avisar que esta postagem pode ter linguagem mais rebuscada/complexa do que a maior parte do que escrevo. Dicio me ajudou muito, e pode ajudar vocês também. Alguns conceitos mais importantes estão linkados em suas primeiras aparições.

Agora que os avisos foram dados, eis a postagem em si:

Existem diversas maneiras de descrever gêneros. Boa parte dela tem a ver com certas qualidades. Enquanto algumas qualidades sejam simplesmente sinestésicas, ou analogias, existem algumas que aparecem com certa frequência. Algumas delas são:

Feminilidade: Geralmente, feminilidade é associada com delicadeza, passividade, requinte e vaidade; estereótipos associados ao gênero feminino binário. Obviamente nem todas as pessoas femininas cumprem estes estereótipos, assim como mulheres e meninas não deveriam se sentir obrigadas a cumpri-los. Porém, feminilidade (assim como outros itens da lista) é um arquétipo, que pode ser aplicado por diferentes pessoas em diferentes contextos.

Também gostaria de dizer que esta definição de feminilidade tem bastante a ver com a cultura em que cresci, e ela pode variar de acordo com a cultura ou experiência de vida de cada pessoa.

Pessoas de qualquer gênero podem se dizer femininas, mas existem gêneros específicos que giram em torno disso, como nonera, ceterofeminine e femigênero. Por causa da conflução entre feminilidade e gênero feminino (mulher/menina), pessoas não-binárias que sentem conexões com feminilidade ocasionalmente se identificam com gêneros não-binários relacionados ao gênero feminino (ou que possuem mulher/menina no nome), como juxera, demimulher e mulher não-binária.

Mulheridade: Característica associada a ser mulher. Geralmente essa palavra é encontrada em contextos feministas, mas ela também é útil fora deles para dissociar a ideia de feminilidade da ideia de ser mulher, e para discutir a associação que certas pessoas não-binárias sentem com ser mulher.

Mulheridade, na minha opinião, também é um arquétipo, mas um com significados que variam muito mais de pessoa para pessoa do que o arquétipo de feminilidade. Mulheridade pode ser associada à sororidade, ao companheirismo entre mulheres ou pessoas que se alinham com mulheres. Pode ser associada ao corpo, tanto para as pessoas que desejam ter corpos associados estereotipicamente a mulheres quanto para as pessoas que abraçam a ideia de que seu corpo é um corpo de mulher ou possui associação com ser mulher. Pode ser associada à feminilidade. Pode ser associada a experiências em grupos de mulheres, ou a experiências de ser tratade como mulher, ou de querer ser tratade como mulher.

Obviamente, essas características não fazem de alguém mulher ou mais mulher, mas pessoas que se identificam positivamente com estas experiências podem querer se identificar com mulheridade, parcialmente ou totalmente.

Pessoas que se identificam com mulheridade podem ter diversos gêneros além do feminino binário, e não são obrigadas a se rotular de forma que sua mulheridade seja óbvia (como mulher agênero ao invés de agênero ou mulher não-binária ao invés de não-binárie). Porém, existem gêneros não-binários especificamente relacionados ao gênero feminino binário, como juxera, menina-fluxo e schrodimenina. Por causa da conflução entre feminilidade e mulheridade, pessoas não-binárias que sentem conexões com mulheridade ocasionalmente se identificam com gêneros não-binários relacionados à feminilidade (ou que possuem “feminine” no nome), como librafeminine, transfeminine e femigênero.

Masculinidade: Geralmente, masculinidade é colocada como o contraponto da feminilidade. Ou seja, geralmente é associada com rudeza, ação, agressividade e desleixo; estereótipos associados ao gênero masculino binário. Obviamente nem todas as pessoas masculinas cumprem estes estereótipos, assim como homens e meninos não deveriam se sentir obrigados a cumpri-los.

Também gostaria de dizer que esta definição de masculinidade tem bastante a ver com a cultura em que cresci, e ela pode variar de acordo com a cultura ou experiência de vida de cada pessoa.

Pessoas de qualquer gênero podem se dizer masculinas, mas existem gêneros específicos que giram em torno disso, como nonvir, ceteromasculine e mascugênero. Por causa da conflução entre masculinidade e gênero masculino (homem/menino), pessoas não-binárias que sentem conexões com masculinidade ocasionalmente se identificam com gêneros não-binários relacionados ao gênero masculino (ou que possuem homem/menino no nome), como proxvir, demimenino e homem não-binário.

Hombridade: Esta palavra pode se referir a “uma aparência máscula e viril”, ou a uma característica de quem é “íntegre, destemide e corajose”. Esta palavra derivou-se de hombridad, que daí sim se refere ao que estamos falando aqui: a “qualidade de ser homem”, ou “qualidade exclusiva de homens”. Também tentei procurar por outras opções, mas a única que gerou resultado foi hombritude, que aparentemente é utilizada da mesma forma que hombridade. Ou seja, não achei nada que falasse de ser homem por si só, sem o arquétipo machista de que homens são o ápice da sociedade, fodões, etc etc. Enfim, estou usando hombridade aqui no lugar de uma palavra melhor, para falar de características relacionadas a ser homem, que não necessariamente são exclusivas de homens binários, e que não necessariamente possuem conexões com o arquétipo da masculinidade.

Hombridade pode ser associada à fraternidade, ao companheirismo entre homens ou pessoas que se alinham com homens. Pode ser associada ao corpo, tanto para as pessoas que desejam ter corpos associados estereotipicamente a homens quanto para as pessoas que abraçam a ideia de que seu corpo é um corpo de homem ou possui associação com ser homem. Pode ser associada à masculinidade. Pode ser associada a experiências em grupos de homens, ou a experiências de ser tratade como homem, ou de querer ser tratade como homem (de uma maneira não relacionada ao privilégio, e sim à utilização da palavra homem, ou talvez à utilização da linguagem o/ele/o, e conceitos relacionados).

Obviamente, essas características não fazem de alguém homem ou mais homem, mas pessoas que se identificam positivamente com estas experiências podem querer se identificar com hombridade, parcialmente ou totalmente.

Pessoas que se identificam com hombridade podem ter diversos gêneros além do masculino binário, e não são obrigadas a se rotular de forma que sua hombridade seja óbvia (como homem neutrois ao invés de neutrois ou homem não-binário ao invés de não-binárie). Porém, existem gêneros não-binários especificamente relacionados ao gênero masculino binário, como proxvir, menino-fluxo e schrodimenino. Por causa da conflução entre masculinidade e hombridade, pessoas não-binárias que sentem conexões com hombridade ocasionalmente se identificam com gêneros não-binários relacionados à masculinidade (ou que possuem “masculine” no nome), como libramasculine, transmasculine e mascugênero.

Androginidade: É relacionada à mistura de qualidades masculinas e femininas. Por andrógine já ser um gênero não-binário, não vemos muitas pessoas distinguindo androginidade como mistura de masculinidade e feminilidade de androginidade como mistura de mulheridade e hombridade.

Por conta do exorsexismo da sociedade, androginidade não é um conceito muito explorado, então acaba sendo mais vago do que os anteriores. Além disso, é um conceito muitas vezes misturado com o conceito de neutralidade, pela crença de que como só existem dois gêneros, o que estiver entre os dois é neutro. Mesmo assim, existem pessoas que se associam com androginidade e não com neutralidade, e vice-versa.

Existem muitas pessoas que acabam descrevendo seu gênero como “um pouco dos dois”, “meio homem e meio mulher”, “bicha fancha”, aquela palavra com H utilizada para alienar pessoas intersexo, e outros termos que remetem tanto ao gênero masculino quanto ao feminino, ou tanto à masculinidade quanto à feminilidade; essas pessoas podem se identificar com um conceito de androginidade.

Há gêneros além de andrógine que podem ser associados com androginidade, como inavire, ambonec e alteandrógine. Mas é possível ter conexão com androginidade sendo de qualquer gênero.

Neutralidade: É relacionada à neutralidade em relação a todos os gêneros ou qualidades relacionadas a gêneros. Pode ter a ver com não ter gênero, com não se importar com arquétipos de gênero, entre outras questões. Também é um conceito que não é tão discutido, e que pode parecer vago por conta disso.

Assim como as outras qualidades, não é necessário ter um gênero neutro ou não ter gênero algum para se identificar com neutralidade. Porém, existem gêneros especificamente relacionados com neutralidade, como gênero neutro, transneutre e ceteroneutre.

Maveriquinidade, maverinidade ou veriquinidade: É definida como o conceito de masculinidade em relação a homens, ou de feminilidade em relação a mulheres, só que em relação a maveriques. Não existe muita discussão sobre o que cobre o arquétipo da maveriquinidade, mas pode ter a ver com a independência do binário de gênero além da neutralidade, androginidade ou ausência de gênero.

Desta forma, poderia ser associada a vários gêneros não-binários, mas fora isso, maverinidade pode ser associada a certas expressões de gênero que tentam ir além de “misturar sinais masculinos e femininos” ou de neutralidade.

É possível que existam outras palavras para conceitos similares a estes, ou que novas palavras venham a surgir, porém acredito que este seja um bom panorama de quais qualidades temos atualmente. =)