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Posts for : junho 2016

Por que não utilizar o termo LGBTfobia?  4

Esta postagem foi escrita por certa discussão hoje, onde pessoas não entendiam o que havia de errado em resumir as opressões sofridas pela comunidade LGBTQIAP+ em LGBTfobia.

O uso de fobia para descrever opressão e discriminação é controverso por seu potente capacitismo, em relação a pessoas que realmente possuem fobias. É por isso que não uso termos como transfobia e afobia em geral. Porém, esta postagem irá focar apenas na ideia de tentar incluir um monte de discriminações contra identidades diferentes em uma só palavra.

Bem, vamos começar apontando o óbvio: é só LGBT ali. LGBTfobia não considera a existência de diadismo (intersexofobia), amatonormatividade (arofobia) ou alossexismo (acefobia).

Admito que bifobia normalmente é um termo generalizado para quem sofre com monossexismo. Os ataques que pessoas pan, omni ou outras que sejam atraídas por multiplos gêneros sofrem não são muito diferentes do que os ataques que pessoas bi sofrem, com a exceção do problema adicional de reclamarem que são termos desnecessários, apenas para “floquinhos de neve especiais”. Também há o exorsexismo que acompanha a intolerância em relação a identidades não-binárias, que não é especificamente direcionada para pessoas multi que se dizem atraídas por gêneros não-binários.

Embora a maioria das pessoas em espaços LGBT nem saiba da existência de gêneros não-binários, acredito que dê pra forçar a barra e dizer que consideraram exorsexismo (discriminação contra pessoas não-binárias) dentro de transfobia.

Admito também que LGBTfobia pode até ser um nome relativamente adequado para quando ultraconservadores falam mal “dos LGBTs”, quando não sabem a diferença de identidade de gênero e de orientação sexual, ou quando sabem e colocam tudo no mesmo saco. E, bom, normalmente falam de “homens beijando homens”, de “mulheres beijando mulheres”, e de “pessoas que acham que podem mudar de sexo”. Realmente não falam de algo que teria a ver diretamente com pessoas intersexo, assexuais ou arromânticas. Porém, se estes grupos tivessem mais visibilidade, com certeza iriam falar publicamente contra eles, ao invés de utilizarem cirurgias forçadas e estupros corretivos de forma que a discriminação seja invisível.

Ok, temos aí o esquecimento de grupos que certamente sofrem com a di/cis/heteronormatividade! O que mais?

LGBTfobia ignora as causas individuais de grupos marginalizados na comunidade LGBT+.

Pessoas bi compõem mais ou menos 50% da comunidade LGB+. Ainda assim, poucos são os fundos que vão especificamente para causas bi. Mesmo que pessoas bi sejam estatisticamente mais discriminadas em relação a gays e lésbicas. Até terapeutas “LGBT-friendly” tentam convencer pessoas bi de que na verdade são hétero ou gay, e bissexualidade é listada como sintoma de diversas doenças mentais.

O B e o T da sigla só foram adicionados mais tarde, mas isso não significa que gays e lésbicas realmente toleram pessoas bi e trans. [x] [x]

Monossexismo é um grande problema, mas é extremamente difícil ver alguém falando de monossexismo ou de bifobia de forma que não seja superficial: ou como se não fosse diferente de heterossexismo (ou de ódio específico contra pessoas que são atraídas pelo mesmo gênero), ou mencionando episódios de violência contra pessoas bissexuais, mas sem analisar como alguém pode discriminar especificamente pessoas bi/multi.

Pessoas bi/multi muitas vezes sofrem abuso por serem atraídas por mais de um gênero, mas a comunidade gay e lésbica insiste que é só pela atração pelo mesmo gênero, e que pessoas bi são menos discriminadas, por possuírem o privilégio de se casarem com alguém de um gênero aceitável pela sociedade. No entanto, as estatísticas não mostram nenhum privilégio, muito pelo contrário.

O ponto é: bifobia não é discutida quando só se põe em foco a “LGBTfobia”. Discriminação contra pessoas bi/multi conta como LGBTfobia quando é violência pela pessoa estar com alguém do mesmo gênero; conta nos números de violência contra pessoas LGBT. Mas e quando o assunto é pessoas bi/multi – em sua grande maioria, mulheres – serem abusadas por parceires de qualquer gênero pelo medo de traição, ou quando são estupradas para convencê-las a “escolher um lado”? Isso vai pra baixo do tapete.

Portanto, “LGBTfobia” apaga a discriminação específica contra pessoas multi, e faz com que pessoas não falem de monossexismo. Só falam que a discriminação foi por “ser LGBT”, não especificamente por “ser bi/multi”, e agem como se as outras pessoas da sigla corressem os mesmos riscos que uma pessoa bi/multi corre. Além de, claro, ganharem fundos para combater discriminação em cima disso, que, por sua vez, não é gasto com causas de pessoas bi/multi.

Um caso similar ocorre com pessoas trans.

Mulheres trans são um dos grupos que corre mais risco de ter AIDS, mas são frequentemente excluídas de programas feitos para combatê-la. Fundos de saúde LGBTQ+ gastam muito mais em homens LGB+, com mulheres LGB+ em segundo lugar com menos da metade do que é gasto com homens, e pessoas trans em terceiro lugar. (Pessoas intersexo ganham uma quantidade ridiculamente pequena de fundos, mas hey, estamos falando de LGBTfobia, não de LGBTIfobia!)

Mortes também são um problema. Este estudo mostra que pessoas trans possuem 50% a mais de risco de serem assassinadas do que gays ou lésbicas (ainda que, neste caso, se só contar o Brasil, são 9 assassinatos de pessoas trans contra 8 de gays e 3 de lésbicas). Este estudo feito em relação a assassinatos de pessoas lésbicas, gay, bi, trans, queer e soropositivas teve como resultados 45% de assassinatos de mulheres trans, e 87% de assassinatos de pessoas de cor (não-brancas).

Este reporta que, entre pessoas assassinadas por serem LGBTQ ou soropositivas, 53% eram mulheres trans, e 73% eram pessoas de cor.

Quase metade destas mortes de pessoas LGBT+ nas Américas foram mulheres trans. O mesmo estudo fala que mais da metade das 300 mortes no Brasil foram de mulheres trans (“mulheres trans” aqui provavelmente inclui outras pessoas transfemininas: pessoas designadas como homens ao nascimento que possuem alguma identidade relacionada com feminilidade ou com o gênero feminino, como muitas travestis).

Ou seja, ativismo que se apropria destas mortes, como se pessoas LGB+ cis e brancas tivessem a mesma chance de serem assassinadas do que mulheres trans negras, é extremamente desrespeitoso.

Também houve o caso do filme Stonewall. Stonewall era um bar para as pessoas mais indesejadas da comunidade LGBT+; pessoas trans, homens gay afeminados, lésbicas masculinizadas, pessoas sem-teto, pessoas de cor, profissionais do sexo, e assim vai. Porém, o filme preferiu inventar um personagem principal mais aceitável para o público hétero – um homem gay, cis e branco. O filme também deixou de contratar mulheres trans para contratar homens cis para fazer o papel delas. E, ao invés de mostrar Sylvia Rivera, mostra uma personagem similar, talvez porque a presença dela no ato seja contestada por algumes.

Isso pode não ser superficialmente “LGBTfóbico”, afinal, é um filme sobre uma parte do movimento gay, e es personagens fictícies ainda são LGBT+. Porém, esta ainda foi uma jogada cissexista e racista, uma vez que deixa implícito que gêneros são só roupas pela contratação de homens cis, e que pessoas transfemininas de cor não são simpáticas o suficiente para que um filme sobre um evento histórico aonde elas foram protagonistas tenha uma protagonista que seja coerente naquele contexto.

Lésbicas também sofrem discriminação específica. Aqui tem uma anedota pessoal de lésbicas serem convidadas a sair de um bar gay. Lésbicas enfrentam um mundo onde a sexualidade masculina é considerada mais importante, e onde histórias com lésbicas são feitas para consumos de homens hétero. Lésbicas são sexualizadas e fetichizadas publicamente.

Pessoas trans, meninas bi e lésbicas estatisticamente sofrem mais na escola do que meninos bi ou gay.

Enquanto falarmos só sobre LGBTfobia, a discussão não vai passar do superficial.

Homens gays e lésbicas ainda vão perpetuar discriminação contra pessoas bi e trans. E vão se dizer mais oprimidas para a sociedade em geral, mostrando como prova o quanto de discriminação pessoas LGBT em geral sofrem.

Lésbicas ainda vão acusar mulheres trans de serem predadoras sexuais. E, através de teoria feminista radical, vão incentivar legislações como as da Carolina do Sul, onde pessoas trans não podem mais ir ao banheiro que “não corresponde com seus genitais”.

Homens gays e brancos ainda vão excluir mulheres lésbicas, bi e trans, além de qualquer pessoa LGBTQIAP+ de cor, de espaços e movimentos, por não serem aceitáveis o suficiente.

Pessoas brancas vão organizar protestos em áreas nobres contra a LGBTfobia, citar as quantidades de mortes causadas por LGBTfobia, e comover as pessoas com o quanto é perigoso ser LGBT+, quando a maioria destas mortes teve como alvo grupos específicos.

Pessoas vão dizer o quanto é importante lutar contra a LGBTfobia, mas vão falar só de homofobia, porque supostamente é o “ponto em comum”.

Pessoas vão dizer que protestos e paradas são bons para conscientizar a população de que existimos, enquanto a maior parte da população não sabe o que é uma pessoa transgênero, não-binária, ou até mesmo o que exatamente é ser bissexual. Quem dirá saberem o que é uma pessoa pan, arromântica, intersexo ou demigênero.

Celebram Stonewall, enquanto tentam passar a mensagem de que são iguais a pessoas di/cis/hétero, com “a exceção de quem amamos”.

A complexidade de rótulos  0

Algumas vezes, vejo pessoas confusas quando veem orientações complexas.

Primeiramente, há pessoas cujas orientações sexual e romântica são diferentes uma da outra. Isso já é explicado nas páginas O que é orientação sexual? e O que é orientação romântica?. Algumas pessoas são arromânticas e pansexuais, ou birromânticas e heterossexuais.

Pessoas arromânticas e/ou assexuais também muitas vezes especificam outros tipos de atração, o que é também coberto por uma página daqui: Outros tipos de orientações.

E então temos casos um pouco mais complexos.

Várias orientações dos espectros assexual e arromântico podem ser utilizadas em combinação com outros rótulos.

Por exemplo, uma pessoa pode ser demissexual ou greyssexual, e isso denota que tal pessoa só sente atração raramente. Mas não denota qual ou quais gêneros podem ser alvos da atração sexual, quando ela ocorre. E daí surgem identidades como demiheterosexual ou greypolissexual. Note que estas identidades nem levam em conta orientação romântica, ou qualquer outra além da sexual.

Várias identidades dos espectros assexual e arromântico também podem ser coerentes umas com as outras. Uma pessoa pode ser cupiograyrromântica – raramente se apaixonar, mas querer um relacionamento amoroso mesmo sem a atração romântica. Alguém pode até ser cupiograyfrayrromântique – raramente se apaixonar (gray), só se apaixonar por pessoas não muito próximas (fray), e ainda assim querer um relacionamento amoroso (cupio). E isso nem leva gênero em consideração – a pessoa poderia adicionar ali que é panromântica (pode se apaixonar por qualquer gênero), por exemplo.

Existe o prefixo myr- (que pode ser “traduzido” como mir-), que é para pessoas que se encaixam em várias orientações do espectro a-. Então, por exemplo, uma pessoa cupiograyfrayrromântica poderia se dizer mirromântica.

Enfim, estes rótulos são apenas para cada pessoa poder expressar corretamente como sua atração é sentida. Ninguém é obrigade a utilizar todos os rótulos que se encaixam, e nem a divulgar todos os rótulos que se encaixam.

Mesmo assim, é importante respeitar que uma pessoa que se diz cupiograyfrayrromântica biaceflux não está “só confusa” ou “querendo ser especial” por não utilizar só bissexual, arromântica ou aceflux como identidade. É uma identidade tão válida quanto alguém que só se diz ser gay ou assexual; está apenas falando de uma experiência mais específica, e não obriga ninguém a se categorizar de maneira similar.

Por uma normalização da linguagem LGBTQIAP+  0

Aviso de conteúdo: Menção de violência transmisógina e de assuntos que podem evocar disforia. Intersexofobia, transfobia e ignorância em relação a identidades incomuns no geral.

Há um trabalho sério de educação a ser feito em volta da linguagem que utilizamos no dia-a-dia. Enquanto algumas pessoas – não qualquer pessoa, mas pessoas em grupos ativistas ou em universidades – já incorporam, de certa forma, a possibilidade de alguém ter um relacionamento com alguém do mesmo gênero, é bem mais raro haver a inclusão de outras identidades na linguagem do dia-a-dia.

Muites utilizam o x em redes sociais para simbolizar neutralidade, em frases como “todxs contra a violência”, mas, ao falar na vida real, utilizam “todos e todas”, como se estivessem sendo completamente inclusives por incluírem “ambos os gêneros”.

Muitas mulheres comentam que suas vidas seriam melhores se tivessem nascido com pênis, como se não houvesse uma enorme quantidade de assassinatos de mulheres trans e de outras pessoas de identidades transfemininas, por estas serem mulheres ou pessoas confundidas com mulheres que nasceram com pênis.

Muitas pessoas tratam de gravidez, de aborto e de menstruação como se fossem exclusivos de mulheres, ou deixam implícito que toda mulher conhece estas coisas, o que exclui diversas pessoas trans e intersexo.

Pessoas não-binárias não podem se apresentar e dizer seus pronomes e ter gente entendendo o que está acontecendo. E, se entendem, vão quase sempre enfrentar comentários sobre o quanto é difícil se referir a alguém com pronomes que não lhes vem à mente para a pessoa.

Pessoas de qualquer identidade mais incomum, não importa o quanto refletiram sobre serem de certa identidade, vão encontrar pessoas perguntando se possuem certeza, e se isso não é só uma vontade de querer ser especial ou de querer se encaixar, se contarem sobre sua identidade para outras pessoas.

Deveríamos ter grupos LGBTQIAP+ lutando por mais visibilidade, de formas concretas como panfletos e workshops. Isso é uma questão muito mais simples do que pautas vagas de acabar com a homofobia/transfobia, e muito mais efetiva do que declarações de repúdio ao bullying. Estas são coisas importantes também, mas não devem ser as únicas pautas que mobilizam a comunidade.